Em 1975, entretanto, no governo de Ernesto Geisel, sinais de enfraquecimento eram percebidos. Uma promessa de afrouxamento do regime foi o que bastou para que os primeiros sussurros sobre uma possibilidade de anistia aparecessem. Em 1978, o partido da oposição começou a ser visto como uma maneira de confrontar a ditadura. Movimentos sindicais e estudantis voltaram a se manifestar. Em 1979, quando, por fim, se deu a Lei da Anistia, já havia uma nova conscientização do fazer político, com a aposta em greves e mobilizações de rua. O Ato Institucional número 5 deixou de vigorar no último dia de 1978. “Quando a Lei de Anistia foi discutida no Congresso, não estávamos mais em uma situação de censura, de luta armada, de predomínio da repressão”, elucida Carla. “Os grupos que começaram a pressionar por demandas particulares, pela anistia, souberam aproveitar essas novas liberdades.”
Houve, todavia, um descontentamento por parte dos que estavam mais empenhados na luta pela anistia. Clamavam por uma lei ampla, geral e irrestrita, que abrangesse, também, os responsáveis por crimes como tortura e sequestro.
Para que a implantação da Lei da Anistia tivesse sido diferente, Carla acredita que teria sido necessário um apoio maior do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) ou da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “Eram instituições com as quais o governo dialogava. Se eles tivessem se envolvido mais, teriam conseguido mais adeptos para a causa, o que pressionaria o Executivo.”
Mesmo que tenha sido uma conquista, a professora explana que a lei foi imposta e aprovada por um congresso controlado. “Um terço do Senado era formado por senadores biônicos, que não foram eleitos de forma democrática. Havia uma divisão, parlamentares da Aliança Renovadora Nacional (Arena) votaram na proposta do MDB, que ampliaria o projeto da lei. Mesmo assim, o projeto foi aprovado sem a ampliação, resultando na posterior insatisfação com relação aos beneficiados por ela.”
A Lei da Anistia marcou o início de um processo de transição, sem ruptura, para o regime civil. “Não houve um momento de derrota dos militares, fato que poderia explicar o caráter conservador que se faz presente tanto no Executivo como no Legislativo e no Judiciário”, elabora Carla. “Os crimes contra a segurança nacional foram julgados pela Justiça Militar. O Judiciário, em si, sofreu uma grande influência da ditadura, determinando quem seriam as pessoas aptas a obterem cargos naquele poder.”
Para a professora, que é doutora em História pela Ufrgs, essa junção de tendências conservadoras justificaria a relutância dos governos democráticos em julgar os responsáveis por crimes de tortura e sequestro. “Ainda hoje, é admissível a prática da tortura por diferentes atores sociais. Restou uma dificuldade em assumir o que foi feito e garantir que não será repetido. O interesse em tratar do tema da ditadura acaba sofrendo interferências de disputas políticas do presente.”
A ambiguidade dos dois lados da lei
Uma norma relevante como a Lei da Anistia porta mais de um significado. Partiu tanto da demanda dos perseguidos do regime político como de uma estratégia em curso para iniciar um processo de transição que garantisse a impunibilidade dos agentes desse mesmo regime.
“Na época, o principal debate girava em torno da volta dos exilados e da devolução dos direitos políticos aos cassados. Hoje, a questão é outra: fala-se muito sobre a impunidade dos agentes da ditadura. Uma vez que o Senado estava repleto de representantes escolhidos pelo regime militar, a discussão se voltou, principalmente, nas exclusões. O esclarecimento e a punição dos crimes conexos ficaram em segundo plano”, relata Carla.
Segundo a pesquisadora, ao mesmo tempo que existia um grupo que afirmava que todos, sem exceção, deveriam ser perdoados, outro bradava que crimes cometidos por agentes do Estado não deveriam ser inclusos na lei. “Ela acabou sendo aprovada daquela forma e o sentimento de vitória acabou sendo suficiente, na época, à medida que as pessoas retornavam da situação de exílio, mesmo que os agentes permanecessem protegidos.”
Apesar de a criação das Comissões da Verdade terem feito com que o País voltasse os olhos para as lembranças da ditadura, para a professora, engana-se quem pensa que a punição desses agentes está próxima. “Falta muito para que isso aconteça. Quando a Comissão da Verdade foi criada, houve, inclusive, uma insistência grande em afirmar que o órgão não teria prerrogativa para punir culpados, mesmo que seja óbvio que o objetivo da comissão era apenas o esclarecimento dos crimes”, argumenta.
“Ainda existe uma grande divisão de opiniões. Há os que acreditam que seguir em busca de respostas não levará a nada. Outros acham que trazer a público o nome dos torturadores já é uma forma de punição. Há, também, aqueles que pensam que não importa que os acusados já estejam em idade avançada ou que os crimes estejam prescritos, eles precisam prestar contas com relação a isso.”
Aos familiares das vítimas, resta o peso de ter que lidar com uma perda que pode jamais vir a ser esclarecida. Caso seja, há também uma questão de cunho individual: como perdoar um torturador que não admite o que fez e tampouco se arrepende do sofrimento que causou? Para a professora, não há como adivinhar como cada envolvido lidaria com essa situação. Entretanto, segundo ela, a valorização pública dessa experiência gera certo conforto, servindo como uma recompensa simbólica.
“A ampla divulgação da história dessas famílias faz com que elas sejam mais facilmente comunicáveis, uma vez que há mais ouvidos atentos. Com boa vontade do Judiciário, há diversos caminhos a serem trilhados. A avaliação de desaparecimentos como crimes continuados e a responsabilização civil dos torturadores são exemplos”, aponta.
‘Não existe iniciativa do governo para apoiar a revisão da Lei da Anistia’
Juliano Tatsch
ISAAC AMORIM/AGMJ/DIVULGAÇÃO/JC
Secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão defende reinterpretação da lei
Criada pelo Ministério da Justiça em 28 de agosto de 2001, a Comissão de Anistia tem como missão analisar os pedidos de indenização formulados pelas pessoas que foram impedidas de exercer atividades econômicas por motivação política entre setembro de 1946 e outubro de 1988. Por volta de 73 mil pedidos de anistia política foram recebidos até agora pela comissão. Desses, 63 mil já passaram pela análise do grupo, que é presidido pelo mineiro Paulo Abrão. Aos 39 anos de idade, o secretário nacional de Justiça é uma das vozes mais fortes do governo em defesa de uma nova interpretação da Lei da Anistia de 1979, que permitiu o retorno ao País de perseguidos políticos e, ao mesmo tempo, serviu como um salvo conduto para os servidores públicos que cometeram crimes durante o regime militar.
Conforme levantamento do portal Contas Abertas, desde 2002, mais de R$ 5,2 bilhões já foram pagos em reparações econômicas a perseguidos políticos do período militar. As indenizações são pagas de duas formas: parcela única ou mensal e permanente. Ainda de acordo com o Contas Abertas, do total pago, R$ 3,9 bilhões foram em prestações mensais e R$ 1,3 bilhão, em indenizações retroativas. Em torno de 40,3 mil requerimentos de anistia já foram deferidos.
A passagem do aniversário de 50 anos do golpe militar voltou a colocar em foco, com grande visibilidade, diversas questões relativas ao regime autoritário e os reflexos do período na atual democracia brasileira. Uma delas é a Lei da Anistia.
Abrão já expôs posições firmes a respeito do assunto. Sobre a necessidade de torturadores serem levados ao banco dos réus, disse, em um artigo, que “não se trata de revanchismo, pois não se deseja torturar os torturadores, mas sim processá-los e julgá-los segundo o devido processo legal e o direito ao contraditório”. Em outro texto, afirmou que “apenas um legalismo deturpador pode sustentar que a figura ‘crimes políticos’ abrangeria condutas como o ‘estupro político’ ou o ‘choque elétrico político’. Nenhuma lei conseguiria considerar a tortura crime político, implícita ou explicitamente”.
Em entrevista ao Jornal da Lei, o secretário nacional de Justiça fala sobre o contexto político no qual a lei foi criada e aprovada, sobre a necessidade de o Estado brasileiro cumprir a sentença condenatória emitida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e sobre a proposta em tramitação no Senado que revisa o entendimento da lei, entre outros pontos.
Jornal da Lei – Quando a Lei da Anistia foi criada, o contexto político e social talvez não permitisse uma legislação muito diferente da que foi instituída, pois era preciso apaziguar a situação. Hoje, entretanto, o cenário é outro. Passados 35 anos da criação da lei, qual a avaliação que pode ser feita de seus efeitos na sociedade brasileira?
Paulo Abrão – A luta pela anistia é uma luta pela liberdade. Em um primeiro momento, os movimentos sociais clamavam pela anistia ampla, geral e irrestrita. Posteriormente, o governo fez uma lei. Essa lei foi aprovada por um Congresso controlado e não democrático, inclusive com senadores biônicos, cerca de um terço deles. Esse projeto de lei foi aprovado por uma votação apertada, inclusive (206 votos a favor e 201 contrários). O conceito de anistia, nesse segundo momento, se apoiava na ideia de impunidade. Já na Constituição Federal de 1988, a ideia de anistia era diferente, era de reparação. A anistia foi entendida como reparação pelos constituintes. Não é à toa que o Estado brasileiro criou a comissão de reparação, com o nome de Comissão de Anistia, a qual eu presido. Hoje, por sua vez, os movimentos sociais e de direitos humanos trabalham para associar o conceito de anistia ao conceito de verdade e justiça.
JL – O senhor já se manifestou publicamente dizendo que não se trata de revisar a Lei da Anistia, e sim de interpretá-la adequadamente. O que significa isso?
Abrão – O significado do conceito de anistia está em permanente transformação. Existe um debate consistente sobre isso. Nessa discussão, se diz que a lei de 1979 não prevê em nenhuma de suas linhas, em nenhuma de suas palavras, o perdão ao crime de tortura. Nesse debate, se defende que a tortura não é crime político e que a ação do agente torturador foi uma ação paralela às ações oficiais do regime. Não havia autorização da ditadura para a tortura, pois não existiam leis que permitiam a sua prática. Por isso, se afirma que não se constituía em crime político. Foram os tribunais superiores que alargaram as interpretações da lei, dizendo que a abrangência dela valia para toda e qualquer conduta relacionada à resistência e à repressão. No mundo jurídico, essa interpretação se tornou comum. A narrativa política dá sustentação às interpretações que o Judiciário teve. Essa narrativa diz que a Lei da Anistia foi um acordo necessário para a redemocratização do País.
JL – Quem defende a manutenção da interpretação da lei como está fala que ela foi resultado de um acordo político necessário na época.
Abrão – O Congresso tinha duas leis para votar. A oposição apresentou uma proposta de anistia ampla, geral e irrestrita. Ela foi derrotada. Uma anistia restrita foi aprovada, como queria o governo. Como falar em acordo político se um lado foi derrotado? Foi uma lei imposta. Quando uma ideia é vendida como tudo ou nada, se trata menos de um acordo e mais de uma chantagem. O acordo político para a transição não aconteceu em 1979. Ele ocorreu em 1985.
JL – O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos por não cumprir os tratados internacionais dos quais é signatário e deixar impune responsáveis por crimes de lesa humanidade. O fato de o Estado brasileiro descumprir normas que ele próprio assinou, e de ele próprio ser um dos maiores, se não o maior violador dos direitos humanos no País, por meio de seu sistema prisional, por exemplo, não coloca em xeque qualquer política de valorização e respeito a esses direitos no Brasil?
Abrão – Quem foi condenado pela Corte Interamericana foi o Estado brasileiro como um todo. Não foi o Executivo. Foi o Estado brasileiro: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Todos os poderes têm o compromisso de cumprir essa sentença. Historicamente, todas essas decisões que condenaram o Estado brasileiro internacionalmente foram cumpridas. O Poder Executivo está implementando as ações que lhe cabem, por meio da Comissão de Anistia, das reparações, dos reconhecimentos. O Legislativo também fez a parte dele, com a aprovação da lei que criou a Comissão Nacional da Verdade. A questão ainda pendente diz respeito à superação da Lei da Anistia. Isso está em debate ainda e cabe ao Judiciário apreciar. Já foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas ainda não é uma questão encerrada. E me pareceu simbólica a visita dos membros da Corte Interamericana ao Brasil e a realização de uma sessão conjunta com o STF (a sessão foi realizada em novembro do ano passado). Isso aponta para a expectativa de que haja uma complementariedade entre as duas jurisdições.
JL – Tramita no Senado um projeto de Lei, do senador Randolfe Rodrigues (P-Sol), que permite que militares e civis responsáveis por graves violações dos direitos humanos no período do regime militar sejam punidos. Assim, uma reversão da situação atual pode vir do campo político. De que forma o Ministério da Justiça, e, por consequência, o governo federal, vê esse projeto?
Abrão – Não existe nenhuma iniciativa do governo federal em direção a apoiar a revisão da Lei da Anistia. É uma decisão que tem de partir do poder Judiciário. Não existe um consenso sobre o reconhecimento dos crimes de lesa humanidade como imprescritíveis ou passíveis de anistia. Eu não acredito na proposta que está em tramitação no Congresso como uma alternativa. Essa lei teria forte restrição em ser aplicada aos fatos anteriores à sua existência, por exemplo. Não é uma questão de revisar a legislação. Na época da aprovação da Lei da Anistia, já estavam assentado na jurisprudência internacional que crimes como tortura, desaparecimentos, assassinatos e sequestros sempre devem ser apurados e que, junto a isso, não devem existir regras que impeçam essa apuração. A interpretação da lei foi errada e, agora, temos de corrigir essa interpretação.
JL – Em um artigo, o senhor fala que reparação, verdade e justiça são indissociáveis. Qual o nosso estágio atual no que se refere aos três pontos?
Abrão – No que diz respeito à reparação, o desafio está em concluir os trabalhos e levar essa reparação para todas as vítimas do período. A Comissão de Anistia ainda tem 15 mil processos em apreciação, por exemplo. Em relação à verdade, ainda aguardamos a conclusão dos trabalhos e a divulgação do relatório final da Comissão Nacional da Verdade. Esperamos esses documentos para ver se os trabalhos foram suficientemente abrangentes. No ponto de vista da Justiça é que temos nossa situação mais grave. Nenhuma vítima viu os autores dos crimes serem punidos judicialmente.
JL – Recentemente, o senhor afirmou, e foi noticiado pela imprensa, que a Lei da Anistia é um “escudo para que não se coloque o dedo na ferida em todas as demais pendências institucionais de fundamento autoritário”. Por que existe tanta dificuldade no Brasil em romper esse escudo e encarar o seu passado recente de forma franca?
Abrão – Tradicionalmente, o Brasil esquece suas transgressões. O Brasil nunca enfrentou as maiores violações de direitos de sua história. Nunca enfrentou a escravidão, nunca enfrentou a Guerra do Paraguai, nunca enfrentou Canudos e nunca enfrentou a ditadura militar. Precisamos reconhecer essas violações. E a Constituição de 1988 deixa claro, em suas disposições transitórias, que a anistia é para aqueles que sofreram os abusos, não para os que praticaram (em seu artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição diz que “é concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares”). Vejo esse debate como um grande processo pedagógico, de aperfeiçoamento das nossas instituições. Uma compreensão das pessoas de que direitos devem ser respeitados. Acordos políticos não podem negociar os direitos das pessoas.
JL – A sociedade brasileira está pronta para dar esse passo, está preparada para ver agentes públicos que cometeram crimes na ditadura serem punidos?
Abrão – Se o Judiciário entender que é um direito das vítimas, essa responsabilização de quem cometeu os crimes acontecerá pela convicção de que isso é um valor para a sociedade. Os direitos humanos não estão à mercê da opinião de maiorias. A decisão do Judiciário afirmará um conjunto de valores e abrirá a oportunidade para a conscientização e a formação social.
PERFIL – Nascido em Uberlândia, em 11 de junho de 1975, Paulo Abrão é mestre em Direito pela Unisinos e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O secretário nacional de Justiça tem uma ligação forte com o Rio Grande do Sul. Além do mestrado na Unisinos, é professor da Pucrs, tendo sido coordenador do departamento de Direito Público da universidade entre os anos de 2003 e 2007. Também foi coordenador da assessoria jurídica da Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, e membro dos conselhos municipais de Ciência e Tecnologia e de Segurança Pública da Capital. Além de acumular os cargos de secretário Nacional de Justiça e de presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, é juiz do Tribunal para a Justiça Restaurativa em El Salvador. Como acadêmico, também foi o organizador das obras Assessoria Jurídica Popular (Edipucrs), Diálogos em Direito Público (Edipucrs) e Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Americano (Universidade de Coimbra/MJ).
Transformações culturais precisam partir da sociedade, diz Maria do Rosário
Suzy Scarton
Entre janeiro de 2011 e abril de 2014, a gaúcha Maria do Rosário ocupou a titularidade da Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República. Como responsável pelas ações referentes ao tema, a então ministra e atual deputada federal (PT) teve de lidar com questões relativas a reparações e responsabilidades do Estado sobre as violações ocorridas durante o regime militar.
Mesmo pressionada pela Organização das Nações Unidas, a presidente Dilma Rousseff não aprovou a iniciativa que busca a revogação da Lei da Anistia. Maria do Rosário justifica a posição da presidente tecendo a ideia de que essa solicitação deveria partir da sociedade. “É uma medida que deve unir os esforços do parlamento e da sociedade brasileira, que traga uma mudança cultural. Tal alteração precisa envolver as novas gerações na luta pela punição dos criminosos da ditadura. Não é algo a ser imposto pelas autoridades”, reflete.
Para a ex-ministra, a condenação dos crimes seria vital para completar a transição à democracia. “Esses atos violentos praticados pelo Estado formaram uma geração de agentes, de policiais, de membros de Judiciário. Se tomarmos a decisão de estancar isso, ainda que o efeito não possa ser sentido com a responsabilização criminal, a retirada do direito de anistia dos agentes do Estado vai dar uma visão diferente no enfrentamento dessa violência.”
Entretanto, ela admite que a questão não é tão simples, uma vez que um dos principais subterfúgios é o pacto de silêncio que os militares fizeram entre si. “A busca por esclarecimentos é o maior legado. A força da Comissão da Verdade, por exemplo, não é um fim em si mesmo. Faz parte de um processo de tomada de consciência do País diante das violências praticadas naquela época, que foram disfarçadas de crime político”, explica.
Uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de dezembro de 2010, condena o Estado brasileiro a investigar os fatos e apontar culpados pelos abusos cometidos durante a repressão à Guerrilha do Araguaia. Criou-se então, a dúvida: a sentença teria validade, uma vez que a Lei da Anistia já vigorava no País? Maria do Rosário afirma que sim. “Os crimes de desaparecimento são crimes prolongados, uma vez que os corpos nunca foram encontrados. Tortura é imprescritível, inafiançável. São atos contra a humanidade”, reitera.
Para a ex-ministra, é praticamente impossível que os familiares das vítimas encontrem paz caso a ideia de revogação da lei seja descartada. “Essas pessoas foram apresentadas como terroristas. Foi dito que elas foram mortas por terem resistido à prisão. Na maioria das vezes, foram assassinadas de forma covarde depois de sessões bárbaras de tortura”, relata. “Os parentes sempre têm esperança de descobrir o que realmente ocorreu, não importa quantos anos já tenham se passado. O Estado deve isso a eles.”
Ditadores no banco dos réus: o exemplo argentino
Juliano Tatsch e Suzy Scarton
Em 1976, iniciou-se, na Argentina, um governo ditatorial que retirou do cargo o então presidente Arturo Illia. No dia 24 de março daquele ano, o presidente eleito mediante normas da Constituição foi deposto através de um golpe de Estado, organizado pelo almirante Emilio Massera, pelo brigadeiro Orlando Agosti e pelo general Jorge Rafael Videla. A Constituição foi suspensa, os partidos políticos foram proibidos e a censura em rádios e canais de televisões foi estabelecida. Instauraram-se, assim, uma série de governos militares que, durante sete anos, permaneceram no poder.
Evidentemente, a ditadura não se estabeleceu por acaso. O fim temporário da democracia foi o resultado de um longo processo que objetivava a queda do governo de esquerda peronista. Os militares agiram, então, com a desculpa de “salvar a pátria”, visando ao desenvolvimento econômico e à industrialização. De quebra, também acabariam com o dilema entre os a favor e os contra o peronismo, que seria substituído por um padrão condizente às preferências militares.
Mais curta que a brasileira, a ditadura argentina se caracterizou por uma intensa repressão e é tida como a mais sanguinária da América do Sul. Aproximadamente 30 mil argentinos foram sequestrados e mortos pelas forças militares. Estima-se que dois milhões e meio tenham fugido do país. Ao contrário do que houve no Brasil, entretanto, a Argentina puniu seus algozes com maior agilidade. Dois anos após o fim do período repressivo, o general Videla foi condenado a duas penas de prisão perpétua por crimes contra a humanidade cometidos durante o período em que governou a Argentina, de 1976 a 1981.
Apesar da proximidade territorial entre Brasil e Argentina, o ex-ministro da Justiça e Direitos Humanos argentino Jorge Reinaldo Vanossi afirma que não há semelhança entre os regimes autoritários conduzidos nos dois países. “Não há como comparar”, resume. “As situações políticas da época eram diferentes, bem como as pretensões dos militares e a reação popular. Ditaduras são parecidas, algumas mais brandas que outras, mas são as peculiaridades que as definem.”
Os resquícios da ditadura fizeram com que o estabelecimento da democracia fosse mais lento. Boa parte dos argentinos considera a dívida com o Estado já quitada, uma vez que punições ocorreram. Outra parte, porém, não se conforma – e provavelmente chorará as perdas humanas para o regime por um longo tempo, como as avós da Plaza de Mayo, que escoam as lágrimas resultantes das perdas de filhos e netos, anualmente, sempre em 10 de dezembro.
Avanços em direção à judicialização se intensificaram a partir de 2003
A revisão histórica na Argentina pós-ditadura começou cedo. Já em 1985, dois anos após o fim do regime repressivo, o general e ex-ditador Jorge Videla foi levado ao banco dos réus. Mesmo já passados quase 30 anos, o processo, porém, ainda está em andamento. Conforme o secretário executivo do Instituto de Políticas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH), Victor Abramovich, os argentinos ainda não sentem que a ustiça já tenha sido feita em plenitude. “Está em curso. Para as vítimas, é muito importante o processo judicial. Poder contar a história, poder investigar e, ao mesmo tempo, ver que os responsáveis pelos atos também são considerados responsáveis pela lei do Estado”, afirma.
Abramovich, que é argentino, destaca que, durante toda a transição democrática, se defendia, sobretudo pelo movimento de direitos humanos, a impossibilidade de se anistiar os crimes mais graves, como a tortura e os desaparecimentos sistemáticos. “Isso, nos últimos anos, foi tratado em diversas esferas do Estado. Primeiro na Corte Suprema, que declarou inconstitucional essas leis de anistia. Depois, o Congresso, por proposta do Executivo, anulou essas leis, por meio de uma iniciativa muito forte do presidente Néstor Kirchner”, observa.
O advogado relata que, a partir de 2003, houve uma forte demanda por respostas dos três poderes a respeito das violações dos direitos humanos cometidas no decorrer dos anos de ditadura. “O que se pensou na Argentina é que era fundamental tratar o tema da reparação das vítimas a partir da Justiça. A impunidade não só afetava as vítimas, mas também a convivência democrática. Não há como se pensar um Estado de Direito quando os crimes mais graves cometidos na história do país não estão sendo julgados.”
No caso do Brasil, a Lei nº 6.683 diz que é concedida a anistia a todos que cometeram crimes políticos ou praticados por motivação política entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Diante do que diz a legislação, cabe a pergunta: tortura pode ser considerado um crime político? Para o ex-ministro da Justiça e Direitos Humanos argentino Jorge Reinaldo Vanossi, tortura é crime comum. “Essa questão já foi estabelecida por lei. A tortura é um crime bárbaro, inafiançável. Não pode ser, nem remotamente, considerada crime político”, categoriza.
A opinião de Vanossi não é isolada. Em 2010, a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) condenou o Estado brasileiro por não ter investigados crimes cometidos pelo regime na repressão à Guerrilha do Araguaia. A sentença afirma que a Lei de Anistia é incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (conhecida como Pacto de San José), da qual o Brasil é signatário.
A ONU também já condenou a inércia brasileira em não punir torturadores. Por meio de sua alta comissária dos Direitos Humanos, Navi Pillay, o órgão já se manifestou, quando da criação da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, que a lei que criou a CNV “deveria incluir a promulgação de uma nova legislação para revogar a Lei de Anistia de 1979 ou para declará-la inaplicável por impedir a investigação e levar à impunidade”.
‘A Justiça é a negação da revanche’
Juliano Tatsch
ALINA SOUZA/ESPECIAL/PALÁCIO PIRATINI/JC
Segundo Javier Miranda, vontade política pode avançar sem conflitos
Do final de junho de 1976 ao final de fevereiro de 1983, o Uruguai viveu sob a égide da repressão. Não existe um dado oficial, mas entidades ligadas aos direitos humanos calculam que o número de mortos e desaparecidos pelo regime autoritário pode chegar a 295. No país vizinho, porém, movimentos já foram feitos em direção à responsabilização de agentes públicos que cometeram crimes durante o período. Em entrevista ao Jornal da Lei, o secretário de Direitos Humanos do Uruguai, Javier Miranda, afirma que vontade política é fundamental para que os criminosos sejam levados ao banco dos réus, assim como a pressão popular. Para ele, é preciso aprender a viver com as marcas do passado e buscar Justiça, acima de tudo.
Jornal da Lei – Estamos em um processo de revisão histórica no Brasil, com a passagem recente dos 50 anos do golpe militar. No Uruguai, em 2001, foi aprovada uma lei que permite a responsabilização de agentes públicos da ditadura que cometeram crimes. Como foi o processo para a aprovação dessa lei e o que avançou de lá até agora?
Javier Miranda – Nós tivemos uma lei de anistia que não era propriamente a lei aprovada pelo Parlamento democrático em 1986. Essa lei foi mantida até 2012, quando foi revogada. A aprovação da lei, há dois anos, não teve grandes consequências judiciais, mas é um forte símbolo político de como eliminamos um dos últimos bastiões de impunidade. Os processos de judicialização, particularmente a partir de 2005, quando a esquerda ganha o governo nacional, foram avançando. Não diria que há uma mudança qualitativa na Justiça judicial, mas um forte símbolo de derrota de um processo de impunidade que havia se consolidado desde o fim da ditadura e durante todo o processo de transição política.
JL – Acredita que um avanço destes depende ou necessita de um forte apoio popular ou pode vir de uma decisão política do governo?
Miranda – As duas coisas. Sem dúvida, precisa de uma forte vontade política. Se podemos mostrar algo do Uruguai, humildemente, é que a vontade política pode avançar sem conflitos, sem dar razão aos que previam que haveria um enorme conflito social ao julgar os responsáveis pelas graves violações aos direitos humanos no passado. Somos uma prova modesta de que é preciso uma forte vontade política, mas, claro, ela sempre se apoia em uma forte mobilização e conscientização da população. São processos paralelos. Mas é preciso haver condução política, não se pode renunciar dela.
JL – Aqui no Brasil, quem critica a revisão da Lei da Anistia usa muito o termo “revanchismo”. Como o senhor vê isso? Isso foi dito no Uruguai também?
Miranda – A Justiça é a negação da revanche. A Justiça é o ato institucional do Estado, com um poder independente, que é o Judiciário, que submente à responsabilidade todas as pessoas que cometem delitos. A razão de ser do monopólio do Estado do uso da força e da Justiça é justamente evitar a vingança, a revanche. Obviamente, isso foi dito no Uruguai, e vai ser dito no Brasil. A que se apostar na Justiça, não por revanche, mas sim por atuação dos poderes legítimos e democráticos do Estado.
JL – As feridas no Brasil ainda estão abertas. Acredita que elas somente irão cicatrizar de vez, permanecendo na memória, quando os torturadores forem responsabilizados pelos seus atos?
Miranda – As feridas são marcas que permanecem no corpo. Cronologicamente falando, estamos muito perto. São dores muito recentes. Elas irão cicatrizar, mas sempre deixam marcas. Nós vivemos com essas marcas. Temos que aprender a viver com elas, a dialogar sobre nossas feridas. E dialogar sobre nossas feridas é o que nos permite que elas cicatrizem, que passem a ser parte de nós, para nos permitirem seguir vivendo. Ocultando as feridas, elas infeccionam, produzem gangrena. É preciso arejá-las. Em um debate que é, necessariamente, plural, não há verdades únicas, há distintos relatos. Isso é essencial para a construção de democracias participativas.
JL – Como o senhor está vendo de fora o trabalho das Comissões da Verdade no Brasil?
Miranda – Com muito interesse. Há informações no Brasil que serão relevantes também para nosso país. As ditaduras coordenaram a repressão na região. Há informações aqui relevantes. Ademais, há um contexto político. Não se pode esquecer de que o Brasil foi a primeira ditadura de segurança nacional. Inaugurou um processo que logo se espalhou pela região durante toda a década de 1970 e boa parte da de 1980. O Brasil tem muito para mostrar e refletir. Estamos atentos ao que acontece aí. E também com muitas esperanças, pois cremos que é absolutamente valioso dar continuidade a esse processo de fim da ditadura, das Diretas Já, do triunfo dos setores populares na construção de um novo Brasil, que é um país-chave na região e no mundo. Vemos com muito interesse e muita esperança. Cada povo tem seu tempo, seus momentos históricos, suas conjunturas políticas. Há que ir devagar.
JL – No Uruguai, houve muita resistência por parte dos setores mais conservadores, das Forças Armadas ou da sociedade civil a essa decisão política de responsabilizar os agentes públicos?
Miranda – Sempre há resistência. E é natural que se expressem. O que é preciso é seguir persuadindo, seguir elaborando os discursos que, de alguma forma, contraditem aqueles que estiveram fortemente comprometidos com as ditaduras, com a violação dos direitos humanos, e que podiam ter a vã ilusão de que ainda é possível dar golpes de estado e submeter o povo a ditaduras. Isso não é possível e nunca mais ocorrerá na região.
Fonte – Jornal do Comércio