O caso da guerrilha, que fez o Brasil ser condenado internacionalmente, é um dos vários pontos que parecem não ter a atenção devida por parte da CNV
Corpos de guerrilheiros mortos na Guerrilha do Araguaia
A repressão à Guerrilha do Araguaia, um dos casos mais emblemáticos da ditadura brasileira, corre o risco de não ter um capítulo específico no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). O episódio de repressão contra o movimento, formado por membros do PCdoB e camponeses na região amazônica entre os estados de Goiás, Maranhão e Pará (atualmente o Tocantins), de 1967 e 1974, levou em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) a condenar o Estado brasileiro por utilizar a Lei de Anistia como argumento para não julgar os envolvidos em casos de tortura e na morte de 70 pessoas.
O “descaso” com o episódio, a menos de quatro meses do prazo para a entrega do relatório, é fruto da falta de organização e planejamento da CNV, apontam ativistas de comissões estaduais, que preparam relatórios parciais para servir de subsídio para a elaboração do documento que deve ser entregue até dia 16 de dezembro.
“Já escrevemos sobre 15 mortos no Araguaia que eram de São Paulo e, se tivermos tempo e fôlego, vamos fazer os outros 55 casos referentes a esse episódio, pois ninguém da Comissão Nacional está fazendo”, disse Maria Amélia Teles, da Comissão da Verdade “Rubens Paiva” da Assembleia Legislativa de São Paulo. Amelinha, como é conhecida, explica ainda que a comissão de São Paulo está elaborando um volume à parte do relatório final sobre mortos e desaparecidos na ditadura. Das 437 vítimas reconhecidas oficialmente, 168 são de São Paulo ou dizem respeito a paulistas em outros estados.
Amelinha concorda que o Araguaia, um dos casos de maior notoriedade da repressão ditatorial, não parece estar recebendo a devida atenção pela CNV e acrescenta: nesse número total de vítimas do Araguaia não estão camponeses da região que teriam sido torturados. “Não foi feita nenhuma investigação mais apurada em relação à população local. E o que se tem dos guerrilheiros é aquilo que os familiares estão apurando há muitos anos”, lembra.
A CNV fez em 12 de agosto uma audiência sobre o Araguaia e ouviu uma série de militares sobre o caso em novembro de 2013. Não falta material coletado. A questão é o planejamento. Até o momento ninguém está encarregado de elaborar o trecho que discorrerá exclusivamente sobre o Araguaia. Caso isso ocorra, explica o presidente da comissão de São Paulo, o deputado estadual Adriano Diogo (PT), é provável que seja São Paulo quem fará.
A falta de organização e transparência na elaboração do relatório final traz à tona problemas que permearam a relação da CNV com as outras comissões desde o início. “A CNV trabalha de uma forma que é difícil a gente saber exatamente o que está acontecendo. Não é transparente”, reclama Amelinha. “Se você faz sem um planejamento anterior, acaba fazendo tudo correndo, às pressas e faltando informação em tempo hábil. A investigação que se pretendia com a CNV era caso a caso, detalhada, essa era a ideia. Mas, até os dias de hoje, a nossa base é a pesquisa dos familiares, quando na verdade tinha de ser algo maior”.
Responsável pela parte que abordará as violações contra homossexuais, travestis e membros da comunidade LGBT, juntamente com o brasilianista James Green (Universidade de Brown, nos EUA), Renan Quinalha também critica o fato de não haver clareza sobre como as contribuições serão incorporadas. “Há abertura, mas não critérios claros. Eles ainda estão concebendo a estrutura do documento, e isso reflete o problema de a CNV ter pensando no documento tardiamente. O relatório foi uma preocupação mais ao final da comissão, e isso coloca uma série de obstáculos para saber o que realmente vai entrar”, explica Quinalha, que finaliza um texto de 20 páginas para encaminhar à CNV.
O trecho sobre a comunidade LGBT corre ainda o risco de entrar em um capítulo sobre violações de gênero e raça, o que é mal visto pelos pesquisadores. “A ditadura brasileira fez vítimas em diversos setores da sociedade brasileira, que não são apenas os perseguidos políticos”, disse, ao frisar que as forças de repressão viam a homossexualidade como parte de uma conspiração comunista. O próprio Itamaraty, lembra, cassou diplomatas suspeitos de serem homossexuais, assim como constituiu uma comissão que examinasse casos de “funcionários do ministério suscetíveis de comprometer o decoro e o bom nome da casa, tendo em vista o possível enquadramento dos indiciados nos dispositivos do Ato Institucional n. 5”.
Da mesma incerteza compartilham grupos que lutam pelo reconhecimento do Estado das graves violações de direitos humanos contra indígenas. Insatisfeito com o espaço reservado para o grupo social que mais sofreu abusos na ditadura, Marcelo Zelic, coordenador do projeto Armazém da Memória, diz que as 35 páginas previstas pela CNV para o documento final não são suficientes: “O trecho sobre o Araguaia terá apenas 35 páginas? A parte sobre mortos e desparecidos terá só 35 páginas? Por que essa diferenciação da violência?”
Zelic luta para a mudança do texto final, no qual o foco da CNV está voltado para o primeiro contato com algumas tribos, um material muito inicial, segundo ele. “Os números apresentados para o período de 1964-1985 pela CNV dizem respeito a uma parcela dos casos a estudar e com certeza não abrange a totalidade de casos acontecidos no período militar”, ressalta.
Parte dessas frustrações pode ser explicada pelas próprias divergências entre os membros da CNV, que discordam em pontos sensíveis, como a revisão ou reinterpretação da Lei de Anistia, de 1979. “A CNV ficou muito tempo nessa briga de egos”, afirma Amelinha, para quem uma das recomendações que o relatório final trará deve ser a de pedir uma nova Comissão Nacional da Verdade. “Temos de ter uma comissão para apurar e encaminhar esses casos para a Justiça. Não faz sentido o Brasil saber que houve cinco coronéis envolvidos na morte de Rubens Paiva e ficar por isso mesmo. Aí se estará pedagogicamente ensinando a sociedade a ser hipócrita”.
Além do pedido para a extensão do mandato da CNV ou da instauração de uma comissão permanente, há outra certeza uníssona das comissões estaduais sobre um ponto que “não pode faltar” dentre as recomendações do documento final: a reinterpretação ou a revisão da Lei de Anistia, movimento que pode levar agentes torturadores do Estado ao banco dos réus. “Seria mais um trabalho de interpretação da lei”, explica Fernando Coelho, coordenador da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco, parlamentar pelo MDB à época da votação da lei no Congresso Nacional. “Houve um equívoco na decisão do STF ao falar sobre a existência de um acordo para a votação, no qual se teria negociado a volta dos exilados em troca da anistia dos torturadores. Esse acordo nunca existiu”.
Para a presidente da Comissão Estadual do Rio, Nadine Borges, o pedido de revisão da lei é elementar, assim como a abertura dos arquivos da época. “Será uma vergonha histórica se isso não constar no relatório final da CNV”, enfatiza. Ela explica ainda que o relatório parcial do Rio pedirá ainda a inclusão em livros didáticos de um resumo dos trabalhos das comissões da verdade; a formação de direitos humanos em todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas; e a alteração de nomes de logradouros públicos que homenageiem figuras ligadas ao regime militar.
Diogo observa ainda que o documento final da CNV não pode deixar de conter um trecho sobre a participação dos empresários na repressão, enquanto Quinalha lembra a importância de se pedir reparação às pessoas LGBT perseguidas e prejudicadas pelas violências do Estado; e a alteração do artigo 235 do Código Penal Militar de 1969 que estabelece ser crime “praticar, ou permitir o militar que com ele se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar”.
Já a Comissão da Verdade do Rio Grande do Sul mantém a esperança de haver ainda uma recomendação específica sobre a desmilitarização das polícias militares. “As forças públicas estaduais foram transformadas, na ditadura, em auxiliares das Forças Armadas, por isso participaram da repressão também. Essa ideologia que identifica o povo como inimigo é incompatível com a função policial”, diz o coordenador Carlos Frederico Guazzelli. “Mesmo que haja governantes democráticos, a sua polícia acaba sendo extremamente autoritária”.
Procurada por CartaCapital, a CNV não esteve disponível para prestar esclarecimentos a respeito do relatório final. A previsão é de que o documento tenha 33 capítulos divididos em cinco partes que falarão sobre resumo das atividades; comprometimento das estruturas do Estado na repressão; práticas, métodos e eventos emblemáticos; vítimas e grupos sociais vitimados; instituições do Estado e a sociedade face às graves violações de direitos humanos; além de um anexo sobre mortos e desaparecidos e outro com hiperlinks para documentos citados. Até o dia 30 de setembro, a CNV recebe sugestões do público para o relatório final que podem ser enviadas através do site da comissão.
Fonte – Carta Capital