“O Governo me monitorou até 1989, depois do fim da ditadura”

Em 2005, Elias Stein, hoje com 75 anos, pediu todos os documentos onde constasse seu nome ao Arquivo Público do Estado de São Paulo. Sindicalista durante boa parte de sua vida, foi preso e torturado pela ditadura militar em 1974 e, por isso, queria saber o que a polícia sabia sobre ele. Ficou surpreso com o resultado da pesquisa.

 

Elias Stein, ex-sindicalista. / BOSCO MARTÍN

 

“Veio um calhamaço assim”, indica, distanciando o polegar do dedo indicador. Entre os papéis, que comprovavam que havia sido monitorado até 1989, depois do final da ditadura, havia uma lista que chamou sua atenção. Nela constava seu nome, endereço e o nome da empresa Toshiba, fábrica de aparelhos eletrônicos onde trabalhou entre setembro de 1979 e maio de 1980. Se tratava da lista negra do ABC, em referência às cidades da região metropolitana de São Paulo, Santo André, São Bernardo e São Caetano. Nela havia cerca de 450 nomes de trabalhadores de empresas destes municípios. Todos os nomes tinham algo em comum: haviam participado da greve dos metalúrgicos do ABC, que durou 41 dias, em 1980. E, uma segunda coincidência: nunca mais voltaram a encontrar trabalho na área depois de terem sido demitidos ao voltar da cessação coletiva, que terminou no dia 12 de maio. “Quem tinha o 12 de maio na carteira como data de demissão estava condenado a não trabalhar mais”, explica Stein. E o desemprego, para o trabalhador qualificado, segundo ele, “é uma tortura”.

Durante esta greve, Stein foi um dos 16 escolhidos pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, anteriormente líder sindical, para acompanhar a paralisação enquanto ele estivesse preso. Tanto ele como Lula foram parar na tal lista negra. Mas os nomes que estavam nela não sofreram torturas físicas, pois a situação na década de 1980 já era diferente da dosanos de chumbo da ditadura, o período mais repressivo (de 1968 a 1974). O castigo, porém, era psicológico. “Todos tiveram que mudar de profissão ou até de cidade. Eu mesmo deixei de ser metalúrgico para trabalhar na prefeitura de Santo André entregando IPTU (imposto)”, conta, com pesar. Stein explica que muitos só souberam do boicote há pouco tempo, quando a lista negra foi divulgada pela Comissão Nacional da Verdade, que está investigando as empresas que colaboraram com o regime. Ele, no entanto, descobriu sobre a represália enquanto procurava trabalho. “Fui até uma agência de emprego e, enquanto o responsável pelo departamento pessoal foi atender o telefone, peguei a ficha para ver o salário. E lá estava o aviso: ‘Não mandar nenhum candidato cuja data de demissão seja 12 de maio’. Aí eu falei: tá explicado”.

Os papéis do Arquivo Público também registraram o monitoramento que o Governo fez sobre seus passos, mesmo após o final do regime militar, que acabou em 1985. “Na ficha da Abin [Agência Brasileira de Inteligência, antigamente Serviço Nacional de Inteligência (SNI)] constava que eu tinha ido trabalhar noCentro Pastoral Vergueiro[organização que difundia informações para os sindicalistas], em 86; que tinha participado de congresso da CUT [Central Única do Trabalhador, sindicato] no mesmo ano em São Bernardo; que em 89 eu tinha sido assessor da administração regional do Waldemar Rossi [sindicalista] na Mooca durante o governo da Luiza Erundina [prefeita de São Paulo entre 1989-1993]”, lista, enquanto se indigna ao não conseguir explicar como eles conseguiam essas informações – todas verdadeiras – nem qual era o propósito de continuar investigando sua vida.

Ditadura militar

Em 1972, durante a ditadura (1964-1985), Stein foi preso. O levaram ao Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, que tinha Sérgio Fleury na função de delegado, um representante da dura repressão policial da época. “Cada vez que eu olhava para ele [Fleury], me sentia frio na alma. Ele era um demônio”. Stein passou por choques, incontáveis tapas na cara e “muito telefone”, um tipo de agressão que consistia em bater as duas mãos em forma de concha nas orelhas do torturado. “É uma luta interna do seu corpo, que não quer sofrer, com sua consciência dizendo que você não pode falar nada”.

Stein está contente com o resultado das oitivas realizadas pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), que entrevistou torturados e torturadores. No entanto, é muito cético quanto aos esclarecimentos que a CNV conseguiu. “Vão contar a história só daqui a 20, 30 anos, quando todos tiverem morrido. Tem gente que na época era sargento, hoje é general, coronel, e eles não querem que isso apareça”. Critica Lula, dizendo que ele sim tinha força política para obrigar os militares a abrir essas caixas pretas. “Em 25 de fevereiro deste ano o comandante Enzo Peri [comandante do Exército brasileiro] emitiu um comunicado proibindo os quartéis de repassar informações sobre o período. Quer dizer, isso em 2014 e passando por cima da lei de acesso à informação da Dilma”. Esta semana, no entanto, as Forças Armadas, que aglutinam o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, emitiram um comunicado dizendo que não tinham como negar as torturas, um passo em direção ao sonho de Stein.

Hoje, se tivesse que voltar no tempo, não tem dúvida alguma de que tomaria as mesmas decisões. “Faria tudo de novo”, disse. No fundo, acredita que a ditadura segue viva, evidenciada “pelas ações violentas da polícia” em manifestações e no tratamento à população. “Eu acho que a direita ganhou essa guerra ideológica faz tempo. Com a Carta aos brasileiros do Lula em 2002 [que o ex-presidente escreveu para acalmar o mercado financeiro, que tinha receio sobre sua candidatura], provamos que abrimos as pernas para a direita, que seguimos a cartilha deles”. E isso permanece no Governo Dilma, afirma. “O PT tirou do programa de Governo a revisão da lei de Anistia [de 1979, que perdoou os crimes da ditadura]. Não se trata de vingança, mas de não repetir os mesmos erros. Quem torturou tem que pagar, nós torturados já pagamos por isso”.

 

Fonte – El País

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