FHC fala sobre a prisão decretada logo após o golpe, a vida no exílio, a cassação, a prisão e tortura de seus colegas do Cebrap e sua detenção por 24 horas no Doi-Codi, na década de 70
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso prestou depoimento à CNV em sua casa, em SP. Foto: Marcelo Oliveira / ASCOM – CNV
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, 83 anos, prestou depoimento ontem (26/11) à Comissão Nacional da Verdade, em São Paulo. FHC contou aos membros da CNV José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro e ao advogado Luís Francisco Carvalho Filho, ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, sobre golpe militar, a perseguição política, a prisão decretada pela Justiça Militar, a vida no exílio, a cassação e a aposentadoria forçada da Universidade de São Paulo logo após o AI-5, as denúncias de tortura que fez a várias autoridades e o episódio em que foi obrigado a prestar depoimento ao Doi-Codi onde foi encapuzado e fichado pela repressão.
Veja edição do depoimento de FHC à CNV
FHC contou que estava no Rio de Janeiro em 13 de março de 1964, dia do Comício da Central do Brasil, onde pegou um trem para São Paulo naquela noite. Ao sair da casa do pai, em Copacabana, viu luzes acesas nos apartamentos em protesto contra o comício. No trem, encontrou Plínio de Arruda Sampaio e José Gregori e debateram o futuro do Brasil e chegaram a discutir se haveria um golpe.
Dias depois, o golpe era uma realidade. Na USP, ele recebeu a notícia que sua prisão havia sido decretada. Um dos motivos do decreto de prisão de FHC era a sua amizade com o antropólogo Darcy Ribeiro, ministro da Casa Civil de Jango.
Já casado com Ruth (Cardoso, falecida em 2008), ele passou vários dias incógnito em diferentes locais até conseguir ir para a Argentina, onde ficou pouco tempo. Em maio, FHC mudou-se para o Chile, enquanto advogados tentavam reverter a ordem de prisão, que foi anulada pelo Superior Tribunal Militar somente em 1967, quando o ex-presidente já estava ministrando aulas na Universidade de Nanterre, na França, que já vivia a efervescência que eclodiria nos protestos de maio de 68, ano em que retornou ao Brasil.
Sobre o período no exterior, comentou: “estão servindo caviar, mas é amargo, porque o exílio é o exílio. É amargo porque você vive a maior parte do tempo imaginando o que está acontecendo no seu país e na expectativa de que tudo vai mudar”.
Em outubro de 68, FHC foi aprovado no concurso para a cátedra de sociologia da USP e viu as liberdades individuais e a oposição ao regime mais ameaçadas ainda pelo Ato Institucional número 5. Dias depois, estava dirigindo quando ouviu no rádio que ele e muitos outros professores da USP, como Florestan Fernandes, haviam sido cassados e estavam compulsoriamente aposentados.
No dia seguinte houve protesto e o local onde estavam os professores demitidos foi cercado. FHC escapou da prisão, indo a pé da universidade até sua casa, então no Morumbi. Ao receber seu contracheque de aposentado, a funcionária da USP se surpreendeu e perguntou: “Como faz pra se aposentar tão jovem?”. FHC respondeu com bom humor: “Não é tão fácil assim”.
Decidido a ficar no Brasil, FHC passou a dar aulas no exterior e criou com amigos cassados o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), um dos primeiros centros privados de pesquisa do país, “um núcleo avançado de resistência e de pensamento”, onde estabeleceu um relacionamento forte com Dom Paulo Evaristo Arns, que lhe encomendou um livro “São Paulo: Crescimento e Pobreza”, para a Pastoral do Trabalho, “um livro simples”, mas que indicava que o país crescia economicamente, mas sob grande desigualdade e com o aumento da pobreza.
Depois do livro, a sede do Cebrap, então na rua Bahia, foi atacada a bomba “pelo CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ou coisa que o valha. Foi a segunda vez que perdi arquivos por causa de bomba, a outra vez foi na Maria Antônia. Dom Paulo apareceu lá e o Erasmo Dias esbravejava contra nós e quanto mais ele falava, mais a gente vendia livros”, disse.
FHC conta que várias pessoas que trabalharam no Cebrap eram presas, no DOPS ou na Oban (Doi-Codi). O professor procurou o amigo Severo Gomes, então ministro do governo Geisel, que pediu que ele escrevesse uma carta contando os episódios de tortura sofridos pelo pesquisadores da instituição. A carta, assinada por FHC, foi entregue à Geisel, que teria respondido, segundo Severo, “mas esse daí não é comunista?”.
Após um artigo no jornal alternativo Opinião, em que criticava a opção de alguns integrantes da esquerda pela luta armada, foi procurado por Ulysses Guimarães para escrever o programa do MDB para as eleições de 1974 e pesquisadores do Cebrap prepararam textos para a publicação, que previa a incorporação dos temas sociais e econômicos à vida política. “Era um programa social-democrático”, disse. O MDB venceu as eleições.
Depois disso, houve o que FHC chamou de “novas rodadas de perseguições”. Após procurar um general amigo da família, o professor foi chamado para uma audiência com Golbery do Couto e Silva, o super-ministro do governo Geisel, a quem denunciou que vários opositores e outros intelectuais estavam sendo submetidos a tortura quando presos. “Eu não fui torturado, mas vi gente torturada, disse para ele”. O ministro disse para eles procurarem o ministro da Justiça Armando Falcão, que ignorou os pedidos de FHC.
Em outra ocasião FHC foi questionar as torturas ao comandante do II Exército, que disse que as vítimas eram “maus brasileiros”. O então pesquisador irritou-se e disse ao coronel. “Eu poderia estar em qualquer lugar do mundo, dando aula, muito bem pago e estou aqui no Brasil, pois tenho amor ao país”. O ex-presidente conta que isso inverteu “a minha relação com ele e, depois disso, consegui liberar um preso”.
Nesse período, FHC foi intimado ao Doi-Codi para prestar esclarecimentos. “Eu creio que eles não tinham mãos livres sobre nós, porque já era uma fase de Geisel, mas mesmo assim nos tiraram fotografia com aquele número, nos colocaram um capuz na cabeça, passei 24 horas lá”, contou. Era na segunda metade da década de 70 (FHC tem dúvida se foi antes ou depois da morte de Vladimir Herzog, em 75).
No Doi, FHC foi interrogado sobre “ligações com trotskistas argentinos e chilenos” e sua amizade com Roberto Campos. “Eu era traidor por dois polos: direita e esquerda”, disse. “Eles me ameaçaram torturar, mas eu não fui torturado, mas vi a tortura lá”, contou. Lembrei da prisão do meu pai, em 22, que me contou ter sido preso, mas que era servido por garçons.
“O que passou comigo não foi nada, comparado ao que outras pessoas passaram. Mas naquele tempo era muito difícil ser democrata. Hoje todo mundo é. Naquele tempo era um ato de coragem”, afirmou.
O ex-presidente afirmou que apoiou a criação da Comissão Nacional da Verdade por ser um grande entusiasta da Comissão de Reconciliação e Verdade da África do Sul. “Era aparentemente impossível democratizar e permitir uma convivência mais avançada entre as raças e as classe e eles avançaram. E eu li o gesto da Dilma nesse sentido. Para que esses fatos não tornem a acontecer e que a história prevaleça”, afirmou.
Fonte – Comissão Nacional da Verdade/Assessoria de Comunicação