Obra olímpica é vizinha de cemitério de presos na ditadura e jacarés

Parque Radical de Deodoro é construído em antiga área de treinamento militar, cuja fauna ainda resiste. Terreno de obras suspensas do autódromo fica ao lado

Monumento aos mortos na época da ditadura (Foto: Andre Durão)

 

Um cemitério aonde presos políticos da ditadura militar foram desovados junto a indigentes. A área de treinamento de combate do Exército, chamada pelos militares de “favelinha”. Um lago habitado por uma família de jacarés. E o terreno no qual a construção do novo autódromo da cidade está suspenso. É no meio destes locais que está sendo construída a obra mais complexa dos Jogos Olímpicos de 2016, o circuito de canoagem slalom, que formará o Parque Radical ao lado das pista de BMX e de mountain bike. As obras começaram em agosto, com cerca de um ano de atraso, depois que o governo estadual transferiu a responsabilidade da construção para a prefeitura, e tem previsão de término para o quarto trimestre de 2015.

 

Obras do circuito de canoagem slalom com o cemitério de Ricardo de Albuquerque ao fundo (Foto: Andre Durão)

 

Do alto do mirante da obra observa-se o movimento de operários, tratores e caminhões do circuito por onde cerca de 80 canoístas descerão as correntezas formadas por um volume de 26 mil m³ de água – o equivalente a 10 piscinas olímpicas. Logo atrás está o Cemitério de Ricardo de Albuquerque, no bairro de mesmo nome criado há cerca de 100 anos, e que faz limite com o município de Nilópolis, na Baixada Fluminense. Última moradia de uma população de classe média baixa, o cemitério de jazigos simples e covas rasas recebeu os corpos de 14 presos políticos entre 1971 e 1973, período dos anos de chumbo da ditadura militar. Eles foram enterrados como indigentes e anos depois seus restos mortais foram levados para uma vala clandestina com cerca de 2.000 ossadas também de indigentes.   

O trabalho de exumação das ossadas começou em 1991, por iniciativa do Grupo Tortura Nunca Mais. A localização e identificação das ossadas foi possível graças a registros dos institutos Médico Legal e Carlos Éboli. Quando chovia, algumas ossadas da cova rasa boiavam e se espalhavam além do limite do cemitério. Tanto que o campo de futebol ao lado, hoje em dia separado por um muro, ganhou a alcunha de “toca da caveira”. Aquele período foi tema de uma tese de mestrado do professor de geografia Rômulo de Oliveira Costa.

– Acredito que as pessoas sabiam ou desconfiavam do que acontecia, mas não falavam por medo de repressão. Ali foram enterrados os mortos em um aparelho da repressão da Praça de Sentinela, em Jacarepaguá. Os cemitérios de Cacuia, na Ilha do Governador, e de Santa Cruz também recebiam corpos de presos políticos. Eram periféricos, mais afastados da cidade e tinham menor visibilidade – conta o professor do Colégio Pedro II, que a exemplo de gerações passadas de sua família continua morando no bairro.

Em homenagem aos mortos, o Tortura Nunca Mais idealizou um memorial construído pela Prefeitura do Rio e inaugurado em 2011. São 14 totens espelhados que levam os nomes dos perseguidos pela ditadura. Suas ossadas foram depositadas em caixas, dentro de um grande túmulo de granito. Diretora do Tortura Nunca Mais, Victória Grabois ressalta a importância da obra:

– Foi o primeiro monumento no Brasil em homenagem aos mortos políticos. Aquela parte do cemitério, a área das covas rasas, era um lugar insalubre. Com a construção do memorial, a prefeitura fez obras para o escoamento da água.

Cemitério de Ricardo de Albuquerque com as obras do Parque Radical em Deodoro ao fundo (Foto: André Durão)

 

 

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CEMITÉRIO EM CRISE

No ano passado, um esquema fraudulento de vendas e construções ilegais de sepulturas pela Santa Casa de Misericórdia, instituição que administrava 13 cemitérios no Rio, foi descoberto pelo Fantástico, da TV Globo. A crise atingiu Ricardo de Albuquerque. Funcionários ficaram sem receber salários por cinco meses e a concessão do local passou da Santa Casa para o Consórcio Reviver. Administrador do cemitério há 10 meses, Luis Salgado conseguiu resolver o problema dos pagamentos, mas ainda sofre com os atos do ex-provedor da Santa Casa, Dahas Zarur, que morreu este mês. Uma competição olímpica ao lado motiva a recuperação do local.

– Desde que vimos essa proximidade, de saber que os olhos do mundo estarão voltados para cá, tentamos deixar o cemitério mais digno.

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OLIMPÍADAS DE SOCHI ESCONDEU CEMITÉRIO

 

Cemitério No Parque Olímpico De Sochi (Foto: Amanda Kestelman)

O caso lembra as Olimpíadas de Inverno de Sochi, este ano. A organização dos Jogos tentou retirar o cemitério aonde estão enterrados ancestrais da região, localizado bem no meio do Parque Olímpico. A Justiça negou e a solução foi escondê-lo cercando-o de árvores e de containers. A proximidade do Parque Radical com o cemitério de Ricardo de Albuquerque não preocupa o Comitê Rio 2016. O departamento de Desenvolvimento de Instalações da entidade acredita que a pista de BMX e as arquibancadas vão “tampar” a visão para o cemitério.

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PIADAS COM JACARÉS E CEMITÉRIO NOS JOGOS

 

Uma família de jacarés habita um lago bem ao lado de onde está sendo construído o Parque Radical. Funcionários do cemitério de Ricardo de Albuquerque contam que eles ficam camuflados no que restou de vegetação após o início da construção, em um lago repleto de troncos, resultado da derrubada da mata. Entre eles circulam piadas com a proximidade do circuito de slalom. Dizem que nas Olimpíadas os jacarés vão invadir o local e descer a correnteza. E que os canoístas vão cair dentro do cemitério. Capivaras também fazem parte da fauna local. 

– Outro dia uma delas foi até a frente do cemitério e voltou. Sabemos de uma família de jacarés com a mãe e quatro filhotes. Não conhecemos o pai. Muitos bichos saíram dali com as obras – contou Luis Salgado, administrador do cemitério.

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TREINO MILITAR PARA O HAITI

 

Arena Deodoro, Canoagem, Arena Autódromo (Foto: Andre Durão)

 

O mirante de onde se vê as obras faz parte de um conjunto de ruínas de casas habitadas por militares até o ano 2000. Desde então passou a servir de local para treinamento de militares em áreas edificadas até o início das obras para as Olimpíadas. Na “favelinha”, como a localidade ficou conhecida entre os militares, homens aprimoravam suas técnicas, táticas e procedimentos. Militares enviados para operações de pacificação como as do Haiti e das comunidades cariocas, como o Complexo da Maré, passaram antes por ali.

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ÁREA DO AUTÓDROMO QUASE DESCONTAMINADA

Projeto de autódromo de Deodoro, suspenso (Foto: Reprodução)

Olhando à direita no mirante, do outro lado da Avenida Marechal Alencastro, é possível visualizar parte do terreno aonde ainda se planeja construir o Autódromo de Deodoro. O circuito seria o substituto do Autódromo de Jacarepaguá, extinto para a construção do Parque Olímpico. O projeto, porém, está suspenso temporariamente. A decisão do Ministério do Esporte, que financiaria a obra, foi tomada a partir de uma decisão judicial do Ministério Público do Rio de Janeiro, que exigiu a realização de um Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA) na área de Mata Atlântica aonde seria o circuito. O terreno também está repleto de bombas usadas em treinamento do Exército. De acordo com a assessoria de comunicação do Comando Militar Leste, a limpeza do terreno está na fase final.

 

Fonte – Globo

 

 

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