As confissões do DOI-CODI – no livro A Casa da Vovó

“O cotidiano de violência e morte foi disciplinado. Produziram-se regras sobre quem devia apanhar, quem devia bater, quem devia viver, quem devia morrer”

© Foto: Arquivo/Estadão – Agentes do órgão criado pelos militares em 1969 para combater a esquerda contam como eles agiram até 1991

Houve um momento em 1971, durante o regime militar, em que a repressão do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo aos militantes de grupos de esquerda no País mudou de qualidade. O cotidiano de violência e morte foi disciplinado. Produziram-se regras sobre quem devia apanhar, quem devia bater, quem devia viver, quem devia morrer. Tudo com o conhecimento do comando. Essa história agora é contada pelos próprios agentes que trabalharam no DOI – e está no livro A Casa da Vovó.

“Tinha um critério: foi preso, fez curso (de guerrilha) em Cuba ou na China ou na Argélia… Era na rua mesmo”, revelou o tenente Chico, que trabalhou 20 anos no DOI. A ordem de matar os presos que tivessem treinamento de guerrilha no exterior se estendia às pessoas que, banidas do território nacional, voltassem clandestinas ao Brasil. “O banido era para morrer rápido. Já não existia. Tinha de morrer mesmo”, contou a tenente Neuza, que esteve no destacamento de 1970 a 1975.

Inaugurado em 1969, o órgão recebeu primeiro o nome de Operação Bandeirante (Oban) – tornou-se DOI em 1970. Era uma associação entre militares e policiais sob mando do Exército que permitiu ao governo esmagar os grupos que pegaram em armas contra o regime. Sua estratégia se baseava na Doutrina da Guerra Revolucionária, formulada por militares franceses nos anos 1950 para combater a insurgência que buscava a independência da Argélia, então parte da França.

Durante dez anos, agentes do DOI paulista, que serviu de modelo para outros no País, contaram o que sabiam. Homens e mulheres que trabalharam na chamada Casa da Vovó, como eles se referiam ao destacamento, revelaram que a sentença de morte que atingiu guerrilheiros no Araguaia e na Casa da Morte em Petrópolis, no Rio, também existiu em São Paulo. Ela atingiu organizações armadas, como o Movimento de Libertação Popular (Molipo) e a Ação Libertadora Nacional (ALN) e grupos que defendiam a luta democrática, como o Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Foi essa sentença, dizem, que se abateu sobre o guerrilheiro Ayrton Adalberto Mortati, o Tenente, do Molipo. Em outubro de 1971, os agentes da equipe Cúria, da Seção de Investigações do DOI, começaram uma vigilância diária em uma casa na zona leste de São Paulo. “Era um aparelho na Vila Prudente. A gente sabia que tinham uns ‘cubanos’ (guerrilheiros formados em Cuba) lá dentro”, contou o agente Alemão, no DOI de 1970 a 1975.

Mortati foi vigiado até 4 de novembro. Naquele dia, Alemão notou o desaparecimento do Fusca dos ocupantes da casa – eram dois homens e uma mulher. O veículo costumava ficar na rua. Os agentes informaram aos chefes e receberam a ordem: pegar todo mundo.

Alemão e seu companheiro, o delegado Cyrino Francisco de Paula Filho, viram Mortati deixar a casa e o seguiram. Acompanharam o guerrilheiro até a Avenida Paes de Barros, onde viram o Fusca dos guerrilheiros. Quando ele se preparava para entrar no veículo, Alemão e Cyrino o detiveram. Mortati foi entregue ao capitão Ênio Pimentel da Silveira, o Doutor Ney, chefe da Investigação, e se tornou um dos desaparecidos do regime.

 

Viajou

O Exército nunca admitiu sua prisão. “Ele viajou”, contou Alemão. “Viajar” é como os agentes se referem à execução. “O Mortati morreu. Lembro que a gente tinha uma pasta no Interrogatório onde constava o nome dele como morto”, contou Chico. Na casa da Rua Cervantes, outro “cubano” – José Roberto Arantes – foi cercado e morto pelos militares. Maria Augusta Thomaz, a guerrilheira que morava no imóvel, estava fora quando tudo ocorreu.

Além de Mortati, dois guerrilheiros do Molipo foram capturados e mortos nos dias subsequentes: Flávio de Carvalho Molina e Francisco José de Oliveira. Depois de balear Oliveira, os agentes contam que o deixaram sangrar até a morte. Frederico Mayr e Antonio Benetazzo também foram executados depois de presos em 1972.

No relato dos agentes, Lauriberto José Reyes, Alexander José Ibsen Voerões e João Carlos Cavalcanti Reis morreram em emboscadas. Reyes e Voerões iam se encontrar com uma guerrilheira que havia sido detida e torturada pelo DOI. Reis foi vítima da ação do mesmo informante que entregou Benetazzo. O traidor – segundo os agentes – era um dos guerrilheiros formados em Cuba. O homem era controlado pelo capitão Freddie Perdigão Pereira, o Doutor Flávio, subchefe da Seção de Investigação. Era conhecido como Camilo.

Todos os mortos haviam feito curso em Cuba e pertenciam ao Molipo. O grupo nascera de uma cisão da ALN. Seu comando foi esfacelado entre 1971 e 1973 em operações do DOI paulista. A última ocorreu em 17 de maio de 1973, em Rio Verde, Goias. “Nós estávamos com o CIE (Centro de Informações do Exército)”, contou o agente Jonas, um cabo do Exército.

Ali morreram e desapareceram Márcio Beck Machado e Maria Augusta, a moça que escapara ao cerco na Rua Cervantes. A estratégia de morte e desaparecimento se manteria no DOI até o general Ednardo D’Ávila Melo ser removido do comando do 2.º Exército (São Paulo), em 1976.

 

 

Fonte – Estadão por MARCELO GODOY

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