O relatório sobre a ditadura em três histórias

Uma mulher que passou décadas sem saber se o marido estava morto; dois sobrinhos que reconstruíram os últimos dias do tio e uma jornalista que ainda enfrenta pesadelos após a passagem pela prisão e a tortura. Três relatos que resumem o horror e o drama retratados pelo relatório da Comissão Nacional da Verdade, divulgado nesta semana.

“Os militares diziam que a tortura não passa nunca. Tinham razão”

Rose Nogueira foi torturada psicologicamente e abusada sexualmente. Presa 33 dias após dar à luz seu filho, ela ainda guarda as marcas do período.

Rose Nogueira, em visita a uma cela do Memorial da Resistência. / VICTOR MORIYAMA

 

“Os militares diziam que a tortura não passa nunca. Eles tinham razão. A marca não sai, seja no corpo, seja na cabeça.” Aos 68 anos, a jornalista Rose Nogueira ainda se preocupa se o filho Cacá, de 45, está passando frio. Ainda acorda no meio da noite com pesadelos em que acredita estar sendo perseguida. E, depois de passar nove meses presa, entre os anos de 1969 e 1970, não conseguiu engravidar novamente.

O relato dela é um dos que compõem o relatório da Comissão Nacional da Verdade, documento divulgado na última semana que ajudou a apontar e esclarecer crimes cometidos durante a ditadura militar. Na última sexta-feira, ela voltou com a reportagem do EL PAÍS ao local onde foi torturada: a sede do antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), que hoje abriga o Memorial da Resistência de São Paulo, um museu sobre os graves crimes cometidos pela repressão do regime.

“As celas onde eu fiquei já não existem mais”, aponta ela, enquanto caminha pelo corredor onde estão reproduzidas três celas daquele período. Ao começar a contar sua história, chama a atenção do público da exposição, que se aglomera para ouvir parte dos relatos. Chora ao se lembrar das torturas que presenciou e é abraçada por uma mulher, que não a conhece, mas se solidariza. Mesmo após ter visitado o local inúmeras vezes, ainda se emociona muito ao lembrar do que viveu.

“Quando cheguei, no dia 4 de novembro de 1969, ainda estava amamentando. Cacá tinha 33 dias. Eu tinha passado 20 dias no hospital porque sofri uma ruptura da bexiga durante o parto. Sangrava muito e tinha apenas uma calcinha, sem absorvente. Na cela não tinha chuveiro, só uma pia. Só me deixaram tomar banho um mês depois. Eu fedia a leite azedo”, conta ela, que foi presa ao lado do então marido Luiz Roberto Clauset por emprestar sua casa para o encontro de membros da Ação Libertadora Nacional (ALN), entre eles o líder Carlos Marighella. “A gente era cururu [militante de menor importância na organização]. Eles queriam saber quem mais a gente conhecia. Naquele dia tocou o telefone na delegacia e alguém gritou: ‘ele entrou!’. Os policiais saíram correndo, agarraram um monte de arma, mandaram a gente descer pras celas. Mais tarde voltaram gritando: ‘matamos o chefe!’”, conta ela. O chefe, no caso, era Marighella, morto em uma emboscada no próprio dia 4. “Ninguém acreditou. Mas aí chegou a fotógrafa Makiko Kishi, que tinha sido presa ao fotografar o corpo dele, que confirmou a informação.”

 

Reprodução de uma das celas do Dops, no Memorial da Resistência. / VICTOR MORIYAMA

Rose ficou no Dops por 50 dias. A todo momento ouvia dos policiais que buscariam seu filho recém-nascido para torturá-lo. Teve uma infecção que só foi tratada tarde, motivo pelo qual desconfia nunca mais ter podido engravidar. Bonita, foi apelidada pelos guardas de Miss Brasil. “Diziam: acabou de ter um filho e como tem esse corpo? É uma vaca. Uma vaca terrorista”, lembra. Assim como muitas outras mulheres que passaram pelo Dops, foi violentada. Por diversas vezes foi colocada em uma sala e despida. “O [policial João Carlos] Tralli me colocava debruçada e enfiava o dedo em mim. E como eu estava fedida por causa do leite ele me beliscava, me batia, por eu atrapalhar o prazer dele.” Algum tempo depois, um médico aplicou nela uma injeção que cortou o leite.

Depois do Dops, a jornalista foi levada para o presídio Tiradentes, onde dividiu cela com a presidenta Dilma Rousseff (PT), uma “jovem estudiosa e inteligente”. Ficou lá por sete meses. Um dia recebeu um telefonema: o padrasto, por quem foi criada desde criança, tinha morrido. “Não tive coragem de ir ao enterro algemada, com escolta policial. Era uma humilhação enorme”, relata. “Quando eu saí, meu filho tinha dez meses. Foi quando comecei a conhecê-lo melhor”.

Ao lado de seu grupo da ALN, só foi julgada dois anos depois e acabou absolvida, ao lado de vários militantes. “Só que todas as pessoas tinham tido a vida destroçada. Mesmo sem ter sido condenados, já tinham sido. Já tinham cumprido pena”. No dia em que voltou ao trabalho após o julgamento, numa revista técnica de construção, foi avisada da demissão pelo porteiro, ainda na calçada do prédio. “Ele me disse que tinham me visto na imprensa, que eu era uma terrorista e que colocava todo mundo ali em perigo”, relembra.

Logo depois, conseguiu um emprego na TV Cultura, onde trabalhou com o jornalista Vladimir Herzog, diretor de jornalismo da emissora. “Tudo o que eu aprendi sobre televisão foi ele quem me ensinou”. O grupo conseguia fazer um jornal mais progressista para a época, apesar da censura. Até chamar a atenção dos ditadores. “Um dia, Vlado chamou todo mundo da equipe, disse que a polícia estava na casa dele e que ele tinha decidido se apresentar. Fui para a casa apavorada. No outro dia, à noite, era um sábado. Dois funcionários da TV bateram em casa para dizer que ele havia se suicidado na cadeia”, conta ela, emocionada. Apenas em 15 de março do ano passado é que a família dele conseguiu ter um atestado de óbito onde constava a informação verdadeira: ele foi assassinado pelos militares durante o interrogatório.

 

Dentre as marcas que ficaram em Rose após esse período, há algo de positivo. “Saí com a necessidade de luta. Desde que deixei a prisão, decidi que tinha a obrigação de defender os direitos humanos”, diz ela, que após o fim da ditadura presidiu o grupo Tortura Nunca Mais, que luta contra as violações de direitos humanos, e o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de São Paulo (Condepe).

 

 

“Por 34 anos eu não soube se meu marido estava vivo ou morto”

Apenas em 2004 Ilda Martins da Silva, de 83 anos, teve certeza de que seu marido havia sucumbido após ser torturado por militares em 1969.

Ilda Martins da Silva, diante de uma foto do marido Vírgilio tirada no dia em que ele ganhou o concurso de mais resistente dançarino. / VICTOR MORIYAMA

 

Passavam-se 25 dias do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick quando Vírgilio Gomes da Silva, o Jonas, comandante da ação, foi capturado e levado por militares da Operação Bandeirante (Oban) para sede do temido departamento no Paraíso, em São Paulo. No dia seguinte, a operária Ilda Martins da Silva, de 38 anos, mãe de quatro filhos, foi retirada do local onde vivia, em São Sebastião, litoral norte da capital paulista, e levada para a mesma prisão.

Mulher de Virgílio, ela foi brutalmente torturada, com choques, pontapés no peito, tapas e socos, conta ela, hoje uma senhora de 83 anos e profundos olhos azuis, que ainda se enchem de lágrimas quando ela relembra o doloroso passado. Parte de seu relato foi usado pela Comissão Nacional da Verdade e está no relatório final do grupo, entregue na semana passada à presidenta Dilma Rousseff. No último sábado, a aposentada recebeu o EL PAÍS em sua casa, no Jabaquara (em São Paulo), para contar sobre suas lembranças da época da ditadura.

“No dia em que fui presa, levaram três dos meus quatro filhos. Vlademir [8 anos], Virgílio [7 anos] e Isa [quatro meses] foram encaminhados ao Juizado de Menores. O Gregório [2 anos] se salvou porque estava com uma das avós. Quando cheguei na prisão o Virgílio já havia sumido.”

De acordo com relatos de presos, o dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), movimento que lutava contra a ditadura militar, havia apanhado durante o dia anterior inteiro e a madrugada. Campeão de resistência ao aguentar por 72 horas um concurso de dança organizado pela rádio Record em 1957, ele sucumbiu às violentas agressões dos militares e morreu aos gritos de “estão matando um bom brasileiro.”

Ilda ficou oito dias na sede da Oban, depois foi levada para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro de São Paulo, onde ficou um mês. Era uma presa incomunicável. “Não sabia nada dos meus filhos. Os policiais diziam que eu era muito perigosa, então não podia falar com ninguém de fora”, conta ela. “Depois, passaram a dizer que meus filhos estavam com a minha família, o que me desesperou. Achava que eles iam sumir com as crianças e dizer que foi culpa da minha família. Essa era a minha maior tortura. Não saber como eles estavam”, conta.

Foi depois desse mês no Dops, quando foi transferida para o presídio Tiradentes, que Ilda teve uma pista do paradeiro das crianças. “Aproveitei uma menina que estava sendo solta, entreguei para ela o endereço da minha família e pedi para ela ir lá e ver se eles estavam bem. Ela foi, tirou uma fotografia e conseguiu me entregar no presídio”, relembra. Antes de se reunirem à família de Ilda, Vlademir, Virgílio e Isa ficaram em uma casa do Juizado. Os mais velhos contam que eram levados pelos funcionários do local para visitas em residências ricas e oferecidos para adoção. À noite, deitavam embaixo do berço onde a irmã dormia e se amarravam a ele, para evitar que a levassem. Estariam preparados para lutar, se fosse o caso. Ensinados pelo pai a não darem informações sobre a família, causaram desespero quando a irmã do militante finalmente descobriu onde as crianças estavam e foi buscá-las. Os meninos disseram que não a conheciam, que não sabiam quem ela era. Só depois de serem convencidos de que não causariam mal a ninguém, revelaram a verdade e concordaram em ir embora.

Ilda aponta para sua imagem em um retrato de família, em que Virgílio aparece de branco, na ponta inferior à direita. / VICTOR MORIYAMA

Ilda passou quase sete meses no presídio Tiradentes, onde fazia parte do grupo das “donzelas da torre”, presas políticas agrupadas no fundo da prisão, em um local alto, parecido a uma torre. Entre elas estava  Dilma Rousseff, com quem a operária chegou a dividir a cela por um breve período. Ficou por mais três meses incomunicável. “Minha família era proibida de me ver”.

Um dia, foi solta. “Me disseram que eu ia embora. Não me explicaram nada.” Não tinha papel, não foi fichada, não foi julgada. “Hoje, vejo que minha prisão foi um sequestro. Eu não tinha nenhum documento que provasse que eu havia sido presa. Quando juntei meus papeis para pedir indenização ao Estado, tive que recorrer a depoimentos das minhas companheiras de cela para provar que estive lá”, conta ela.

“Tenho certeza de que me prenderam porque não queriam que eu fosse atrás do Virgílio, de saber se ele estava vivo ou morto”.

Ao sair do presídio, tentou por algum tempo descobrir o paradeiro do marido, um dos primeiros dos 243 militantes desaparecidos na época, segundo dados do relatório da Comissão da Verdade. Mas percebeu que estava sendo seguida e, com medo, desistiu. Não conseguia emprego. “Sempre me davam uma desculpa: que eu tinha muitos filhos, que eu estava velha. Mas acho que todo mundo sabia da minha história, saiu em todos os jornais na época”.

Mudou-se, então, para o Chile, com a ajuda da ALN, onde ficou um ano. Depois, foi para Cuba, com os quatro filhos, onde recebeu uma casa do Governo, pensão e seus filhos puderam fazer faculdade. Trabalhou como voluntária em diversas atividades e depois como costureira. Permaneceu por 18 anos, período em que só viu a família brasileira uma única vez, em 1986, quando Cuba e Brasil restabeleceram relações diplomáticas.

Durante muito tempo, teve uma certa esperança de reencontrar o marido. O próprio Governo militar negava o assassinato dele. Na prisão dela, os torturadores, mesmo já sabendo da morte dele, diziam que ele havia fugido e, enquanto a torturavam, perguntavam sobre o paradeiro dele. “Todos [os militantes de esquerda] diziam que ele estava morto, mas eu não tinha certeza. Achava que ele pudesse estar pelas ruas, louco em consequência das torturas. Ou que ele estava escondido e um dia ia nos encontrar em Cuba porque ia saber que estávamos lá.”

Em 2004, 34 anos depois da prisão, ela recebeu uma visita do jornalista Mário Magalhães, que preparava a biografia Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia Das Letras, 2012), sobre Carlos Marighella, o fundador da ALN. Ele trazia uma cópia de um documento mantido sob sigilo pela ditadura, o laudo da necropsia de Virgílio, datado de 7 de outubro de 1969.

Ele continha uma fotografia do militante morto, após as torturas, impressões digitais e o nome dele completo, além da causa da morte: traumatismo crânioencefálico por instrumento contundente. Também continha uma lista dos horrores praticados com seu corpo: fratura completa circular com afundamento do osso frontal do rosto, fratura completa da oitava, nona e décima costelas, escoriações nos dois punhos (compatíveis com o pau de arara), hematomas na região escrotal (devido a choques elétricos no local), e outras dezenas de traumas.

O documento dizia ainda que o corpo havia sido encontrado em um terreno baldio. “Era uma forma de dizer que ele tinha sido morto por bandidos. Mas os bandidos eram eles, os militares”, explica Ilda. Apesar de estar plenamente identificado, Virgílio foi enterrado como indigente. E o documento dizia onde: no cemitério de Vila Formosa. Com esse laudo, a família conseguiu obter um atestado de óbito definitivo, ao invés de um de morte presumida. Também conseguiu a exumação de restos mortais no local onde o militante estaria. Feita no final de 2010, Ilda diz que ainda não sabe qual foi o resultado.

 

O relatório da Comissão da Verdade afirma que até o momento nada foi identificado na exumação. Mas que novas escavações devem ser feitas em locais onde estariam enterrados mais desaparecidos políticos. “Gostaria que houvesse um empenho para se achar a ossada porque isso muda muita coisa. A gente passa a ter um lugar, a saber onde ele está. Enquanto a gente não sabe é uma vida sem fim.”

 

“A pesquisa sobre o meu tio morto me reconectou com a família”

Os sobrinhos de Raul conseguiram provar neste ano a causa real da morte do tio: assassinato causado pelas torturas dos militares.


Felipe Carvalho Nin Ferreira, 28, com a foto do tio desaparecido. / DANIEL MARENCO

 

Miguel demorou cerca de quatro décadas para chorar em público a morte do irmão, Raul Amaro Nin Ferreira, morto em 1971 no Hospital Central do Exército (HCE) do Rio de Janeiro. O fez em junho deste ano, na frente de uma árvore recém plantada no dia em que Raul completaria 70 anos, se não tivesse sido torturado até sua morte nos porões da ditadura brasileira (1964-1985). Miguel, que sempre manteve um tenso silêncio sobre o episódio em casa, desmanchou-se na frente de um de seus dois filhos. “Nunca tinha visto ele chorar pela lembrança do irmão. Foi uma vida inteira engolindo a dor, o que marcou muito a personalidade dele e a família toda”, relata o caçula de 28 anos, Felipe Nin. Naquele dia Miguel deixou escapar: “finalmente estou enterrando meu irmão da forma correta”.

A forma correta queria dizer com a verdade marcada no papel, porque a família nunca acreditou que o engenheiro de 27 anos, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, havia morrido de infarto, como os militares disseram na época. Foi com a força da incredulidade que Mariana Lanari, mãe de Raul, abriu o caminho para a descoberta da verdadeira versão dos fatos. “O papel que ela teve foi muito importante porque ela lutou sozinha e conseguiu, ainda na ditadura, desfazer a mentira oficial provando que meu tio foi torturado e assassinado”, conta Felipe. Motivada pelo fervor católico e pela determinação da família de Vladimir Herzog em mudar a versão oficial da morte do jornalista, a avô de Felipe tornou-se uma das primeiras pessoas no Brasil em reclamar com sucesso a responsabilidade da União na morte do filho. A vitória só chegou em 1994. Mas uma década depois Mariana morreu e com ela se foram os encontros da ampla família e a história até então conhecida de Raul, edulcorada pelo amor de mãe e pelas lembranças diluídas pelo tempo.

Tiveram que se passar mais 20 anos para que os detalhes da descoberta de Mariana fossem reconstruídos a partir de dezenas de documentos oficiais. Não foi a Comissão Nacional da Verdade ou os irmãos de Raul os que teceram (quase) toda a história, mas os sobrinhos mais novos, um jovem advogado e um arquiteto, os filhos do pai que chorou pela primeira vez. “Nós tivemos sorte porque recebemos toda a documentação digitalizada, mas existem milhares de documentos jogados no chão úmido de depósitos”, lembra Felipe.

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A pesquisa documental, iniciada em julho de 2012, acabou um ano e seis meses depois com um relatório de 300 páginas que foi apresentado à Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e motivou um novo laudo médico sobre a morte de Raul Amaro onde se defendeu a relação da morte com prolongadas sessões de torturas sofridas durante o encarceramento. “Ele já não tinha mais condições de andar e estava enrolado em uma manta. Aquilo me marcou muito porque foi a primeira vez que vi alguém agonizando”, testemunhou em 1981 o ex-soldado Marco Aurélio Magalhães, presente nos interrogatórios de Raul, antes de o militante ser transferido para o hospital.

O relatório dos irmãos abre também a possibilidade de que Raul Amaro tenha sido torturado no próprio hospital militar com a conivência da equipe médica. O caso é considerado muito relevante na reconstrução dos anos de chumbo do Brasil porque abriu as portas para a investigação de várias outras mortes no HCE. Os próprios sobrinhos ficaram surpresos em descobrir como aquele episódio havia sido documentado. “Há mais de 50 páginas relatando o período que ele ficou preso, é uma quantidade muito grande de informação”, avalia Felipe. O mergulho em toda aquela documentação oficial permitiu reconstruir detalhes cruéis como a ordem de um coronel para adicionar nos autos que o pai de Raul tinha delatado o próprio filho. “Encontramos até o bilhete em que ele pedia para modificar o relatório para incluir o papel delator do nosso avô. Foi tudo uma montagem”, afirma Felipe.

A mãe de Raul nunca mencionava o envolvimento político do filho na luta contra o regime. Ao que parece, ela nunca o assumiu. Mas as entrevistas dos sobrinhos com o círculo próximo do tio revelaram que o engenheiro se debatia entre manter sua condição confortável de funcionário no Ministério da Indústria e Comércio ou entrar de cabeça no movimento guerrilheiro revolucionário. “Raul era um ponto de interrogação sobre duas pernas”, relatou a ex-namorada Vera Marina aos jovens. A pesar da indecisão que o caracterizava, dessa vez Raul não teve a opção de decidir e nenhum dos parentes sabia, nem quis saber, o que de verdade aconteceu.

“Lidar com a parte afetiva desta história foi o mais difícil. A pesquisa me aproximou e me reconectou com a família. Nunca antes tivemos a noção do que representava esta história, o que significava esta busca para as pessoas. Às vezes, pequenas coisas para nós eram enormes para o resto”, conta Felipe ao lembrar do desconforto que a ex-namorada do seu tio sentiu ao ser convidada para ir a uma pizzaria na mesma rua onde Raul vivia.

Preso em primeiro de agosto de 1971 durante uma blitz do Exército quando voltava de uma festa “com atitude suspeita”, conforme uma das quatro versões dos relatórios da prisão, Raul ficou mais 11 dias nas mãos dos militares antes de morrer. Até o dia de hoje e apesar de que sua mãe ter conseguido que a União reconhecesse seu papel nas torturas infligidas ao filho, a certidão de óbito de Raul Amaro ainda mantém em branco a causa de sua morte.

“É algo a ser conquistado, mas não tem sido nosso objetivo”, ressalta Felipe, ocupado com questões mais prioritárias para ele. “O mais importante para nós é a construção do nunca mais. A transformação dos locais de repressão e tortura em locais de memória cumpre um papel muito mais importante do que prender os algozes do meu tio”.

 

O antigo prédio do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), mais um lugar em decadência no centro do Rio, é o local escolhido para ilustrar esta reportagem. Aqui foi onde Raul Amaro passou os primeiros dias do seu cativeiro antes de ser enviado ao hospital agonizando, e onde outros muitos cariocas, como o taxista que nos levou até lá, viram pela ultima vez seus familiares. Hoje o principal objetivo do sobrinho Felipe, vestido com uma camiseta estampada com a fachada do edifício, é ganhar a batalha que seu tio não conseguiu: contrariar a vontade dos agentes. A luta é evitar que a polícia construa ali um museu da corporação. Eles querem que o local seja transformado em uma espécie de homenagem arquitetônica a Raul Amaro e às mais de 400 vítimas que não se curvaram diante o sistema.

 

Fonte – El País

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