Em uma aprofundada entrevista sobre o relatório final da Comissão Nacional da Verdade sobre os mortos e torturados no regime militar no Brasil, José Carlos Moreira Filho, conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, ressalta que a Comissão da Verdade não é ponto final, mas ponto de partida.
Em dezembro de 2014, após um trabalho de dois anos e meio, a Comissão Nacional da Verdade entregou seu relatório final à Presidência da República, que compila informações, depoimentos e considerações referentes aos 21 anos de estado de exceção ao qual a sociedade brasileira foi submetida durante o governo ditatorial. Além do texto, os comissionados apresentaram ainda 29 recomendações, que incluem a responsabilização criminal dos responsáveis por práticas de violência e tortura utilizando o aparato do Estado, a desmilitarização da polícia e a revisão da Lei da Anistia de 1979 — reiterada pelo STF em 2010.
As recomendações geraram diversas críticas, especialmente dos grupos que apontam a necessidade de também responsabilizar as mortes dos grupos armados de esquerda. Segundo o Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, José Carlos Moreira da Silva Filho, é uma “grande perversidade exigir, no estado democrático que vivemos, que essas pessoas continuem sendo vistas como terroristas ou criminosos”. Ele esclarece que a imputação de crime político só pode ser feita contra um estado democrático. “Uma ação armada que atente contra um estado ilegítimo, usurpador, ditatorial, não é crime político, mas direito de resistência.”
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Moreira Filho ressalta que insistir em uma lei da Anistia, submetendo-se a um acordo feito durante a Ditadura, é render-se a uma “legalidade autoritária”. Uma tentativa de “dar um verniz de democracia a algo que não pode, de forma alguma, ser justificado”. No entanto, fora do virtuosismo do papel da Comissão, frente a um contexto negacionista e de impunidade como o brasileiro, cabem outras críticas ao relatório. Especialmente no que diz respeito aos apontamentos feitos quanto aos desaparecidos políticos.
“A Comissão da Verdade não se revelou uma comissão de investigação, mas de sistematização. Sistematizar o que já existia sobre a violência praticada, sobre os lugares onde se realizaram torturas, etc.” Diferente do que alguns comissionados indicavam, fica claro para Moreira Filho que a discussão sobre justiça de transição no Brasil ainda não chegou ao fim. “O fato de a Comissão da Verdade ter encontrado apenas dois dos desaparecidos políticos deixa isso claro: ela não é um ponto final, mas de partida.”
José Carlos Moreira da Silva Filho atualmente é professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS e Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça; é membro-fundador do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Quais foram as principais dificuldades nos trabalhos desenvolvidos pela Comissão nacional da Verdade?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Em primeiro lugar é preciso reconhecer que a Comissão Nacional da Verdade demorou um tempo para conseguir engrenar em um trabalho mais efetivo, como a sociedade mereceria ter, especialmente no que diz respeito à publicização das audiências e oitivas feitas com as vítimas da Ditadura Militar no Brasil. Foi só a partir de determinado ponto, infelizmente mais para o final do que para o começo do prazo, que a comissão começou de fato a divulgar essas audiências, publicá-las nos seus sites, a ter uma atuação mais aberta à sociedade.
Muito dos problemas que a comissão teve deveu-se especialmente a uma série de desacordos internos sobre os rumos que ela deveria tomar e as formas como ela deveria trabalhar. Isso ficou claro e patente quando se chegou ao ápice da saída de Cláudio Fonteles, em junho de 2013, da Comissão. Esse desacordo ficou claro quando houve a divulgação do relatório parcial, em que a Rosa Maria Cardoso defendeu que a lei da Anistia não poderia ser utilizada para evitar a responsabilização dos agentes públicos do Estado por crimes contra a humanidade. José Paulo Cavalcanti, também comissionado da CNV, posicionou-se contrariamente ao que foi demarcado no relatório parcial sobre este ponto.
Apesar disso, penso que com a entrada do Pedro Dallari a coisa assumiu um tom mais objetivo. Os trabalhos começaram a ser feitos com maior profusão. Isso tudo, entretanto, acaba sendo normal. Já são mais de 40 experiências de Comissões da Verdade no mundo todo e elas sempre são premidas por circunstâncias de tempo e, especialmente, políticas, pois mexem com assuntos que afetam aqueles que estão ligados aos poderes políticos e econômicos. Isso gera conflitos e, no caso brasileiro, de modo evidente, com as Forças Armadas.
O relatório tem recebido algumas críticas por ter aprofundado alguns temas, como, por exemplo, a participação do Brasil na Operação Condor. Quais aspectos o relatório deveria ter aprofundado mais?
Antes de fazer estes apontamentos, é preciso apontar uma questão preliminar: a Comissão da Verdade não se revelou uma comissão de investigação, mas de sistematização. Sistematizar o que já existia sobre a violência praticada, sobre os lugares onde se realizaram torturas, etc. É claro que houve um acréscimo em algumas investigações pontuais aqui e ali, mas não se pode deixar de reconhecer que a grande importância do relatório da Comissão não está no aspecto investigativo. Está no fato de que é a primeira vez que o Estado brasileiro assume aquelas 377 pessoas listadas como responsáveis, aqueles lugares apontados e aquela estrutura de violência e perseguição. Uma coisa é ter esses dados apontados de forma clandestina, ainda durante a Ditadura, como o Brasil Nunca Mais. Outra é ver o próprio Estado, através de uma comissão criada por lei, dizendo isso. Esse, para mim, é o grande ganho desse relatório.
No entanto, deixando um pouco de lado esse aspecto virtuoso do relatório da CNV, nos deparamos com a ausência de informaç%u04Des sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos. Esse é o grande dedo da ferida e isso, inclusive, foi responsável pela mudança de tom no discurso da Comissão da Verdade. Ela começou assumindo, pela fala de alguns comissionados, que o trabalho seria uma espécie de ponto final no processo de transição brasileiro. Também se assumiu, de início, que a Comissão não entraria na questão da responsabilização criminal dos agentes da Ditadura, com alguns membros deixando escapar a opinião de que não deveria haver essa responsabilização.
Isso mudou muito, e são mudanças muito positivas. Primeiro, porque é impossível, à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos, não defender a responsabilização. Segundo, porque esse processo não é exatamente de transição, pois a transição política nós já fizemos nos anos 1980. O que estamos falando agora é de Justiça de transição. Sobre como uma sociedade lida com seu legado de violência, com seu legado autoritário.
Essa é uma questão importante não apenas em relação a uma certa justiça ao passado que deve ser feita, mas também em relação à qualidade da democracia que nós queremos. Um país com menos violência, com mais respeito aos direitos humanos e à democracia. Está evidente que no caso do Brasil esse é um processo longo e demorado, que vem se arrastando por décadas. Muito recentemente é que se começou a pautar, nos meios de comunicação, a possibilidade de se discutir uma interpretação racional e à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos para a lei da anistia. Há muita coisa ainda a ser feita dentro dessa ideia de justiça de transição no Brasil. O fato de a Comissão da Verdade ter encontrado apenas dois dos desaparecidos políticos deixa isso claro: ela não é um ponto final, mas de partida. E isso é pontuado também nas recomendações, quando ela aponta a necessidade de dar continuidade ao trabalho.
Muitas pessoas esperavam uma revisão da Lei de Anistia após a entrega do relatório da Comissão da Verdade. Esta é uma reivindicação viável?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que não se trata de revisão da lei de anistia, mas sim da sua correta interpretação à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos e dos princípios e valores da ordem constitucional de 1988. Se tal interpretação é hoje viável? Sim. Mais do que em outros momentos, essa proposta se torna viável por várias razões. Primeiro porque pesa sobre o Brasil uma condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos que diz que a Lei de Anistia não pode ser considerada um obstáculo para a responsabilização por crimes contra a humanidade. Isso independentemente de ter sido acordado em 1979. Na minha opinião, no entanto, defendo que não houve acordo algum. A anistia branca foi uma lei imposta pelo regime que ainda estava em vigor na época, fazendo com que não houvesse outra opção que se apresentasse para que a redemocratização tivesse início.
Outro aspecto que revela a possibilidade de uma mudança no entendimento do Judiciário brasileiro sobre isso é o posicionamento da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público Federal, que passam a ser amplamente favoráveis a isso. Há ainda o posicionamento de alguns dos ministros do Supremo que defendem essa tese, como é o caso do ministro Luís Roberto Barroso.
Juridicamente a decisão que o Supremo tomou em 2010 não terminou. Pende ainda um recurso sobre aquela decisão, além de outras ações propostas no STF com o mesmo objetivo. Há a possibilidade de isso acontecer, ainda que não seja algo fácil, e a Comissão da Verdade foi fundamental para possibilitar este questionamento. Isto porque desde a sua criação se formaram ao redor dela diversas outras comissões da verdade — estaduais ou da sociedade civil. A criação de comissões paralelas é um fenômeno peculiar ao Brasil, um caso único no mundo.
E as contribuições dessas Comissões paralelas foram levadas em conta pelo relatório final?
Foram sim. O relatório final dialogou com a atividade dessas comissões da verdade paralelas. Isso ficou visível principalmente no âmbito das recomendações. Há uma rede chamada Rede Brasil – Memória, Verdade, Justiça, que reúne esses comitês todos em grande parte liderados por ex-perseguidos políticos ou militantes dos direitos humanos. No final do ano passado, a Comissão da Verdade provocou estes comitês a enviarem sugestões para estas recomendações. O Comitê Carlos de Ré, do Rio Grande do Sul, participou ativamente deste processo e enviou uma série de recomendações — nas quais eu também tive o prazer de poder ajudar. E qual foi nossa surpresa ao perceber que essas sugestões estavam presentes no relatório da Comissão da Verdade.
É claro que também houve um diálogo difícil entre os Comitês e a Comissão, especialmente no início, quando havia essa posição de não abrir as oitivas e testemunhos, além da dificuldade em relação aos desaparecidos. O que é, em verdade, uma dificuldade institucional, pois demanda uma vontade política que temos dúvidas se realmente existe em nível forte suficiente de confrontar essa posição — digamos “resoluta” — das forças armadas em não colaborar em quase nada.
Outra crítica que surge acusa o relatório de ignorar as mortes cometidas pela Esquerda, como apontam grupos como o Terrorismo Nunca Mais. Como você compreende estas críticas?
José Carlos Moreira da Silva Filho – Minha avaliação é que primeiro devemos olhar de onde vêm estas críticas. O grupo que você mencionou, o Ternuma, é liderado por figuras que encabeçam a lista que a Comissão Nacional da Verdade aponta que teriam cometido crimes contra a humanidade e sugerem a investigação e a instauração de um inquérito penal para responsabilizá-los pelos seus atos. Ela é fruto obviamente de grupos que, por um lado, não querem ser alvo de um processo de investigação e responsabilização e, por outro, não assumem claramente tudo o que fizeram. Pelo contrário, negam. É uma estratégia ambígua, pois, ao mesmo tempo que se diz: “O que foi feito teve como objetivo evitar uma ditadura comunista ou combater o terrorismo”, quando se pergunta sobre as práticas de tortura e de uso do espaço do Estado para esse tipo de ação violenta, dizem que é mentira e calúnia. É uma estratégia negacionista.
Para além disso, entendo que seria equivocado no caso brasileiro defender que a Comissão Nacional da Verdade tivesse também uma narrativa em relação às ações que os grupos de resistência à Ditadura praticaram — especificamente nos grupos de resistência armada. Isso porque existiram vários grupos que nem sequer chegaram a pegar em armas para poder resistir, e ainda assim foram torturados, mortos, desaparecidos, exilados e perseguidos.
No caso da resistência armada, foram grupos que se aparelharam como forma de resistência. Não eram grupos que tinham o interesse de tomar o poder antes do Golpe e impor, pelas armas, um regime de cores autoritárias. Não, o Brasil não tinha isso. Havia o Partido Comunista Brasileiro, que defendia o Jango, e os grupos que tinham no horizonte a possibilidade de promover uma revolução armada eram muito pequenos e não tinham nenhuma veleidade de querer fazer isso em um momento próximo. Não havia estrutura, organização e nenhuma possibilidade para isso. O único grupo armado com condições de tomar o poder eram os militares — apoiados pelos diferentes setores da elite da sociedade brasileira.
O que se perde de vista quando se defende a necessidade de investigar os crimes da Esquerda é que não há uma paridade entre os atos. Essas ações armadas foram ações de resistência. Ações que se estabeleceram depois que foi aplicado um golpe de estado no país e que foi desenvolvida uma política de supressão sistemática de direitos. Assim, muitos jovens e militantes entenderam que a única forma de combater uma ditadura é a resistência, nem que seja pelas armas. Independentemente dos objetivos políticos que cada um desses grupos teria caso a Ditadura tivesse sido derrubada por meio de uma ação de guerrilha, isso não é o mais importante.
Direito de resistência
Em um ambiente de radicalização como aquele instaurado pela Ditadura Militar, não se pode querer que aqueles que resistem também não sejam levados por uma visão de radicalização contraposta àquela, na medida em que existe um conflito de direito de defesa. E essas pessoas que tiveram coragem de fazer isso foram mortas, torturadas, perseguidas. O Brasil foi o país do Cone Sul que mais longe levou o processo de judicialização do que seriam, para a Ditadura, crimes políticos e de legalização de um processo que não poderia ser legalizado. O que estava na base disso eram Atos Institucionais imunes ao controle judicial, enfiados goela abaixo, violentando a Constituição democrática de 1946. Era uma legalidade autoritária, para usar a expressão do cientista político Anthony Pereira. Algo que buscava dar um verniz de democracia a algo que não pode, de forma alguma, ser justificado.
Essas pessoas já foram investigadas, já sofreram punições muito além do que deviam. Muitos estão desaparecidos, foram banidos, exilados, perderam o emprego ou caíram na clandestinidade. É uma grande perversidade exigir, no estado democrático que vivemos, que essas pessoas continuem sendo vistas como terroristas ou criminosos, quando na verdade o que faziam era exercer seu direito de resistência. Crime político, na sua conceituação, só pode ser feito contra um estado democrático. Uma ação armada que atente contra um estado ilegítimo, usurpador, ditatorial, não é crime político, mas direito de resistência. Num cenário negacionista, como ainda é o brasileiro, no qual passadas quase três décadas ainda se luta contra o óbvio, é complicado reivindicar uma revitimização dessas pessoas que tiveram coragem de resistir.
Grupos armados que se rebelam contra isso não têm igualdade, por exemplo, com o Exército, que conta com milhares de homens, mulheres, artefatos, tanto que foram massacrados. Se há um grupo organizado, que consegue se mobilizar com força ou poderio contra um grupo de Estado, ocorre uma guerra civil de verdade, mas isso não foi o caso do Brasil. Não foi mesmo. Hoje, mesmo na democracia, temos grupos armados que praticam crimes, e isso justifica que o Estado pratique contra eles tortura e desaparecimento forçado? Em hipótese alguma. Não é possível que o governo assuma essa política. Não é possível que o Estado faça esse tipo de crime, tanto que até hoje sentimos a prática da violência estatal. Recentemente foi publicado o Anuário da Segurança Pública, e está aberto claramente para quem quiser ver as consequências da não realização de uma justiça de transição, não somente da Ditadura Militar, mas em relação a vários outros períodos de violência indiscriminada pelas instituições públicas brasileiras.
Uma das recomendações da Comissão na entrega do relatório final foi a desmilitarização da Polícia Militar. Você concorda?
A polícia militar no Brasil, inicialmente, não tinha esse papel que passou a ter com a Ditadura. Ela ficava aquartelada e tinha uma ação pontual para intervir em algumas ações, ajudando o governo do Estado, e desde a Ditadura há um cenário frágil para essas mudanças. E a constituinte não teve força para mudar no cenário da segurança pública brasileira, que era uma instituição blindada na constituinte por oficiais que estavam presentes em todas as reuniões da comissão presidida por Jarbas Passarinho, mas, ainda sim, conseguiu avançar muito graças às mobilizações populares. Isso passa pela luta pela anistia, pelas Diretas Já e que culminaram com a constituinte, que resulta na Constituição excelente que temos, embora com alguns problemas, especialmente no que se refere às Forças Armadas. Nessa, em particular, manteve-se a estrutura da Ditadura.
Daí porque é tão importante a revogação pura e simples da Lei de Segurança Nacional feita ainda no período da Ditadura e de toda essa estrutura. Não se pode ter uma lógica militar para a realização do policiamento nas ruas. O policial está lidando com o cidadão, não com o inimigo externo. Essa é uma tendência que vem se avolumando a partir da Ditadura e do que não fez a democracia até agora. Esse é um dos pontos altos do relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Depois da entrega do relatório, o coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Pedro Dallari, disse que Argentina, Chile e Uruguai já julgaram quem praticou crimes de Estado em suas ditaduras, mas o mesmo não ocorreu no Brasil, e nesse sentido a presidente Dilma disse que “nós reconquistamos a democracia à nossa maneira, por meio de lutas duras, por meio de sacrifícios humanos irreparáveis, mas também por meio de pactos e acordos nacionais, que estão muitos deles traduzidos na Constituição de 1988”. Como o senhor vê essas declarações?
Eu entendo a declaração da presidenta não como um obstáculo, porque a declaração da anistia é importante e ela foi, sim, um marco incontestável do início da redemocratização. Isso não quer dizer que precisamos interpretar a lei da mesma forma. Essa manifestação da presidenta pode ser interpretada de várias maneiras. Uma interpretação incontornável é que ela, de alguma maneira, representou uma finalização para acalmar o ânimo das Forças Armadas, ou seja, para avançar e não bater de frente. Eu não duvido que a presidenta Dilma seja favorável que se vá adiante nessas investigações. Ela atua em uma posição institucional onde lida com diferentes forças e tem que negociar e dialogar, o que compreendemos. Ao mesmo tempo ela não chega, necessariamente, a impedir ou contestar diretamente a possibilidade da responsabilização.
Há pesquisas recentes, uma delas feita por uma estudiosa em justiça de transição, a professora Leigh Payne, da Universidade de Oxford, que tem uma investigação muito interessante mostrando como a combinação de anistias com responsabilizações judiciais resulta em um avanço nas instituições e na produção de menos violência pelas instituições de segurança. Pegando o caso argentino, por exemplo, vemos que naquele momento histórico, mesmo tendo iniciado os juízos, volta-se atrás e coloca-se a Lei da Obediência Devida e Lei do Ponto Final, trazendo uma interrupção nesse processo de responsabilização (ou seja, uma lei de anistia). Isso contribuiu naquele momento histórico da Argentina para que não houvesse um retrocesso, para que o processo avançasse, como de fato ocorreu com a administração Kirchner.
Ela retomou com o apoio da suprema corte daquele país, que se afiliou, como deve ser, claramente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, o que possibilitou a continuidade desses processos que continuam indo na Argentina e produzindo resultados muito positivos do ponto de vista institucional e coletivo. Isso fica claro na postura das Forças Armadas; a própria legislação de segurança da Argentina proíbe que as Forças Armadas, por exemplo, possam se envolver com segurança pública. Só em casos realmente excepcionais.
Anistia
Então, a anistia no Brasil, em 1979, foi importante, foi fundamental. Naquela época era visível que não havia outra opção e era preciso começar o processo de redemocratização, que aquela cláusula de anistia branca aos criminosos da Ditadura era uma imposição que por pouco não passou no processo na Câmara, foi uma vitória por quatro ou cinco votos. Certamente não passaria no Senado, que era formado por um terço de senadores indicados pela Ditadura, ou seja, senadores biônicos, por meio de um outro golpe feito no Congresso por meio de um pacote de 1977, que mudou totalmente a configuração do Congresso. A Lei de Anistia, de 1979, permitiu o retorno dos exilados, a libertação dos presos políticos; ainda que muitos deles não tivessem sido anistiados, eles foram encobertos por outras estratégias jurídicas, mas não pela anistia. Muitos continuaram em liberdade condicional.
Então foi importante, sem dúvida, mas é falso dizer que a Constituição de 1988 encampou o que teria sido esse acordo. Penso eu que não foi um acordo. Foi uma espécie de “tá bom, vamos ter que aceitar isso porque não há outra opção”. A Ditadura continuava em ação. Não se tratou de uma conversa ou acordo, a maioria estava presa. Os políticos do MDB que procuraram costurar isso tiveram um papel muito importante, mas eram, claro, mais o alvo daquilo que poderíamos resumir como “o acordo da corda com o pescoço”.
Legislação
Isto é, era algo incontornável naquele momento histórico, mas não quer dizer que continue sendo. A Constituição não traz um artigo sequer sobre crimes conexos, ela não menciona. O que há é uma Emenda Constitucional, a 26/1985, que convoca a Constituinte. Essa emenda traz, também, uma reedição da Lei de Anistia de 1979, mas sem menção aos crimes conexos e sem trazer a definição esdrúxula da Lei de 1979 e deixa indefinido o que são crimes conexos. Na verdade há uma definição doutrinária que se afasta muito da definição de 1979, definição esta que a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB já pediu junto ao Supremo Tribunal Federal – STF que a interprete constitucionalmente.
No entanto, ao contrário do que alguns ministros argumentaram, a anistia não pode ser considerada um delimitador da Constituinte, que é soberana e tem liberdade de construir a ordem jurídica nova, onde a prática de direito constitucional se coloca. É muito paradoxal querer vincular a constituinte, que demarca o retorno da democracia no Brasil, a uma emenda que veio da ordem jurídica da Ditadura. Essa emenda veio no governo Sarney, mas não podemos esquecer que ele não foi eleito pelo voto popular. Inclusive ele era líder da Arena, foi uma chapa de composição naquele contexto de controle da transição política que a Ditadura procurou fazer. É terrível termos ministros do Supremo percebendo que a nossa Constituição de 1988 se atrele e se submeta à Constituição autoritária de 1969.
O que podemos esperar agora que o relatório foi entregue? O que vem depois?
Essa pauta do pós-relatório da CNV foi, inclusive, o tema de um grande encontro nacional, e como membro da comissão de anistia e também como acadêmico e pesquisador do assunto, tivemos oportunidade de apresentar em Recife, demarcando os 50 anos do golpe. Quisemos iniciar o ano de 2014, 50 anos do golpe, para o pós-relatório da comissão da verdade. Até como uma maneira de se contrapor às forças políticas existentes no sentido de que o relatório deveria ser o ponto final. Penso que os horizontes ainda estão muito amplos e acredito que a CNV teve uma grande virtude, no sentido de viabilizar politicamente vários grupos e espaços da sociedade civil em torno desta pauta. Eu vejo um interesse civil muito claro, até mesmo como professor, em meus alunos jovens de 17, 18 e 20 anos, com um interesse muito grande e o envolvimento de muitos deles pelos políticos e os grupos que aí existem para levar adiante a questão. As pautas estão colocadas e se misturam com pautas atuais, como as que vieram das manifestações de Junho de 2013 que, parecem, foram as pautas mais firmes com relação às reformas das instituições. Esta semana uma imensa juventude, que pertence ao Levante Popular da Juventude, fechou a Rodovia Washington Luiz em um protesto muito bonito, diga-se de passagem, pedindo a punição e o julgamento dos torturadores da Ditadura. Acredito que o trabalho intergeracional de memória foi feito.
A própria comissão de anistia, na qual eu me filio, e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, são comissões permanentes. Há uma perspectiva muito grande para que as duas comissões trabalhem juntas mais do que trabalharam em outros momentos, porque elas vão continuar levando adiante essa discussão no âmbito federal, construindo políticas de memória como tem sido feito. Ainda há a tarefa de identificar os outros desaparecidos políticos, de levar adiante esse processo de apuração e identificação que está proporcionando uma grande ventilação no Judiciário brasileiro, que ainda resiste muito. Em termos acadêmicos, então, nem se fala. Agora em março, por exemplo, teremos a 9ª reunião do Grupo de Internacionalização do Direito e Justiça de Transição – IDEJUST, fundado em 2009, com sede na Universidade de São Paulo – USP e com apoio da Comissão de Anistia, que reúne pesquisadores e acadêmicos das mais diferentes áreas do Brasil, da América Latina e de outros países do mundo. Há encontros anuais em que os trabalhos são trazidos e discutidos pelos presentes. O próximo encontro será nos dias 25 e 26 de março na USP e vai contar, inclusive, com a hospedagem do Instituto de Relações Internacionais, onde Pedro Dallari é professor. Ele vai participar junto com outros membros da CNV e membros de comissões estaduais, onde vamos discutir o balanço do relatório da CNV. Ou seja, o que tem de pano pra manga para trabalhar para o futuro é algo impressionante, sob o ponto de vista acadêmico, sob o ponto de vista institucional e social. Embora haja forças sociais que queiram impelir essa temática para um gueto, tenho certo otimismo de que o debate vai crescer e vai contaminar positivamente a cultura e as práticas do país.
Deseja acrescentar alguma coisa?
Tem um ponto que eu gostaria de acrescentar, ainda sobre a parte mais crítica da Comissão Nacional da Verdade, até porque eu fiz parte desse grupo. Há um conjunto de alunos da USP, chamado GT JK, que reuniu professores, intelectuais e atores institucionais para se contrapor ao relatório da CNV no que se refere à sorte do nosso ex-presidente Juscelino Kubitschek, sobre se a morte dele teria sido um acidente ou um complô relacionado à Operação Condor. Uma polêmica semelhante ocorre aqui em torno da morte de João Goulart.
O que acontece no relatório da CNV é que eles buscaram os resultados da perícia feita pelos mecanismos da Ditadura na época e, a partir desse restabelecimento da perícia feita em 1976, construíram a conclusão de que ele teria sido morto por acidente. Tive a oportunidade de fazer um longo parecer sobre o assunto junto com outros juristas para demonstrar que não poderíamos afirmar com certeza que ele não foi assassinado pela Ditadura — aquela perícia está eivada de irregularidades e não pode ser levada a sério. Inclusive o próprio Judiciário carioca, em 1978, não o fez.
Há uma alegação de que um ônibus teria influenciado no acidente, mas o motorista foi inocentado, dizendo que não teve participação, e nenhum dos passageiros conseguiu afirmar, categoricamente, que o coletivo bateu no caminhão que colidiu com o Opala do JK. São pontos que indicam que este assunto deveria ter sido mais investigado, mas, como digo, não foi uma Comissão de investigação, então não se poderia fechar essa questão.
Acredito que o relatório da CNV fez mal quando afirmou e concluiu que o presidente teria morrido por acidente. O correto seria ter deixado em aberto, como aconteceu com os desaparecidos também. Esta é uma outra crítica que está sendo feita, esse material está sendo somado no Relatório JK, que está disponível na web, com mais de 2 mil páginas, e foi enviado à presidenta Dilma para análise.
Fonte – Carta Maior