Clínicas do Testemunho atendem 140 pessoas que sofreram com o regime.
‘A ditadura é a lei do inferno’, diz militar torturado por elogiar Brizola.
Em um supermercado da Zona Norte do Rio, Belmiro Demésio Berraro Filho, de 68 anos, ouve na fila uma mulher reclamando da corrupção no país. Em certo momento, ela se vira e diz que é a favor da intervenção militar, pedida por uma minoria durante manifestações do dia 15 de março em todo o país – neste sábado (28) um pequeno grupo fez outra passeata pelo Centro do Rio. A reação foi contundente.
“A senhora foi presa, perdeu filhos, pais, mães nos porões? A senhora não sabe o que está falando. Ditadura é a lei do inferno. Eles respondem com morte, com fogo, terror e maldade”, lembra-se Belmiro, em entrevista ao G1.
Ele é uma das 140 pessoas atendidas pelas Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, que forma núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados pela violência do estado durante a ditadura militar. Aplicado há dois anos e vinculado à Comissão da Verdade – que investiga crimes da ditadura –, o projeto instalou cinco clínicas nesta primeira etapa: duas em São Paulo e uma em Porto Alegre, Rio e Recife.
Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, o número de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar chegou a 434: 210 desaparecidos, 191 mortos e 33 corpos encontrados. Foramresponsabilizados 377 agentes das Forças Armadas.
Belmiro foi um dos 3.340 militares da Aeronáutica perseguidos. Ele conta que o sonho de ser aviador servindo ao país foi interrompido em 1969, quando perguntado por outro militar a respeito de Leonel Brizola, então ex-governador do Rio Grande do Sul – depois governou também o Rio de Janeiro – e um dos maiores representantes da esquerda. Ao responder que “nenhum político da época chegava aos pés”, caiu em uma armadilha quase fatal.
“O capitão me chamou, e na sexta-feira à tarde já estava preso. Passei 15 dias dentro de um inferno. Fui poupado da morte. Fui colocado no chão e fui levado para ser sacrificado por ser subversivo, comunista e elemento perigoso para a pátria. Quando houve o disparo de fuzil na minha cabeça, a bala não pegou nela. Bateu na relva, do lado da minha cabeça. Fui penalizado com torturas, recebi um chute na minha testa com bota que me rendeu uma cicatriz até hoje, urinaram no meu peito, fui humilhado. Mas estou vivo”, conta, emocionado.
Após quatro anos se dividindo entre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, veio para o Rio em 1973, onde vive até hoje. Os pedidos pela intervenção militar na passeata contra a corrupção na Petrobras e pelo impeachment de Dilma Rousseff, na Praia de Copacabana, causou revolta. “Eles não têm noção do que é viver dentro dos muros de um quartel, dentro de um inferno. Prometeram em 1964 que haveria novas eleições e elas nunca existiram”, lembra.
Clínica como política de estado
Jane Alencar, de 70 anos, também é atendida pelas Clínicas da Testemunho, que a Comissão da Verdade do Rio, em seu relatório parcial, ao qual o G1 teve acesso, recomenda à Comissão Nacional da Verdade que seja transformada em política de Estado. Para ela, defender a intervenção revela “um profundo desconhecimento da história do Brasil”.
“Tivemos duas ditaduras, com Getúlio Vargas e civil-militar, que só deixaram marcas de dor e retrocesso. Essas pessoas deveriam estudar um pouco a história do nosso país e ver que a democracia tem falhas, limitações. É um processo lento e dificil, mas não existe melhor alternativa política.”
Celas femininas ficavam no 1º andar do DOPS-RJ/(Foto: Marcelo Elizardo/ G1)Jane diz que foi detida três vezes durante a ditadura, teve de encarar uma das mais temidas prisões do período: o prédio do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-RJ), localizado na rua da Relação. Quando foi presa pela primeira vez, tinha entre 16 e 17 anos.
“Fui presa porque, em uma, eu era militante da JEC [Juventude Estudantil Catolica], ligada à Teologia da Libertação. Na outra, porque era militante do movimento estudantil de resistência à ditadura. Em outra vez, dava aulas para pessoas carentes em Oswaldo Cruz. Fui presa pelo Cenimar [Serviço de Informações da Marinha] no prédio da Marinha, perto da Praca Mauá, e muito torturada”, conta Jane, que diz sofrer até hoje com dores agudas e intensas pelo corpo, doenças autoimunes, instabilidade emocional e insônia.
“Quem sofreu essa prática sádica e covarde luta cotidianamente para superar essa sensação de tristeza e revolta. As Clínicas do Testemunho têm dado uma colaboração fundamental na busca do fortalecimento e equilíbrio emocional. Queremos ainda a punição disso tudo.”
Projeto
Segundo a psicóloga Vera Vital, que atende aos pacientes das clínicas, é em grupo que eles se sentem mais à vontade para falar.
“Uma das consequências mais graves da violência repressiva foi sobre os vínculos sociais, como família e amigos, e também com o Estado. Existe uma desconfiança muito intensa também na relação com os companheiros de militância. Muitas dessas vítimas jamais tinham falado com qualquer pessoa sobre tortura”, analisa Vera.
Vera Vital (de óculos escuros) visitou prédio do DOPS-RJ acompanhada de Jane Alencar (ao fundo) e outras vítimas da Ditadura (Foto: Austral Foto/Renzo Gostoli)“Tortura silencia. E o estado brasileiro não criou dispositivos para ouvir essas pessoas. É essa lacuna que queremos preencher, pedindo ao estado brasileiro que disponibilize esse dispositivo”, afirmou.
O presidente da Comissão da Verdade do Rio, Wadih Damous, diz que a experiência das Clínicas do Testemunho deveria se estender a todo o território brasileiro. “A violência não foi só física, ela deixou sequelas psicológicas nos filhos, maridos, esposas que ficaram. No Chile é assim, na Argentina também e por disposição de lei. O estado lá tem obrigação de prestar assistência. E já passou da hora disso acontecer aqui.”
Recomendações da Comissão da Verdade
Entre as 28 redomendações do relatório parcial da Comissão da Verdade do Rio, estão a criação de de Espaços de Memória sobre a ditadura em pontos estratégicos, como o DOPS/RJ, a Casa da Morte, em Petrópolis, a Ilha das Flores, em São Gonçalo, o estádio Caio Martins, em Niterói, entre outros.
Além disso, há a recomendação da tipificação do desaparecimento forçado, um dos métodos de repressão mais característicos da ditadura militar, e de retificação das certidões de óbito dos assassinados pelo regime com a realcausa mortis. O documento também pede a extinção jurídica do termo auto de resistência, usado frequentemente para encobrir casos de abuso e execução de civis por agentes do estado.
“São termos que mostram que a ditadura ainda vive em nossos tempos. São tempos passados que não passam”, explicou Damous.
O documento ainda pede a revisão da Lei de Anistia, assinada em 1979, que perdoa os crimes cometidos por militantes políticos e agentes do estado durante a ditadura.
A Comissão da Verdade do Rio, em seu relatório parcial, destacou momentos importantes, como o depoimento de Paulo Malhães, oficial que foi responsável, entre outros crimes, pelo desaparecimento do corpo de Rubens Paiva. A investigação descobriu, através do depoimento do coronel reformado Raimundo Ronaldo Campos, que confessou ter levado um carro a um ponto distante e o queimado. Depois, soube que aquilo havia sido feito para “justificar o desaparecimento de Rubens Paiva”.
Malhães, torturador confesso, deu detalhes no dia 11 de março sobre o destino do corpo de Rubens Paiva, que foi jogado em um rio de Itaipava, na Região Serrana do Rio. Pouco mais de um mês depois, foi encontrado morto em sua casa na Baixada Fluminense. A polícia concluiu, em julho do ano passado, que Malhães foi vítima de latrocínio.
Fonte – G1