Microfilmes analisados pela UFMG revelam que Wellington Moreira Diniz não entregou Juarez Guimarães sob tortura. Morte do sociólogo e um dos fundadores da Colina em emboscada foi obra de infiltrado do regime militar
Por muitos anos, houve quem acusasse Wellington Moreira Diniz, um dos principais quadros da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), de, sob tortura, ter entregue ao DOI-Codi do Rio de Janeiro informações que teriam ajudado a desmantelar organizações de resistência armada à ditadura militar. Entre essas informações estaria o ponto de encontro que ocorreria em 18 de abril de 1970, no Jardim Botânico, entre Wellington e o sociólogo mineiro Juarez Guimarães de Brito, um dos fundadores da Colina, que, ao lado de Carlos Lamarca e Maria do Carmo Brito, era um dos expoentes da VAR -Palmares e depois da VPR.
Mas cerca de 3 mil documentos dos órgãos de inteligência militares e centros de informação da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, que integram o acervo microfilmado em análise e em processo de sistematização dentro do Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), sob coordenação da historiadora Heloísa Starling, sepultam em definitivo o equívoco. “Os microfilmes comprovam como agentes infiltrados por um aparelho repressivo – que se revela, de forma inédita, sob o comando hierárquico das Forças Armadas, tendo os DOI-Codis papel central de reunião, distribuição e processamento das informações –, ajudaram a implodir organizações clandestinas”, avalia Heloísa.
O Estado de Minas apresentou a Wellington, de 68 anos, que mora em Prudente de Morais, na Região Central de Minas, cópia do relatório manuscrito pelo agente do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) Manoel Antônio Mendes Rodrigues. Com o falso nome de “Luciano”, Manoel se empregara em 1969 na Imobiliária Bolívar, com sede em Copacabana, dirigida por Maria Nazareth Cunha da Rocha, que arranjava “aparelhos” (apartamentos mobiliados) para organizações de esquerda fazerem encontros. Em seus relatórios, “Luciano” detalhava à repressão os passos de Juarez nos cinco dias que antecederam a sua morte: a reunião em São Paulo com Lamarca, o horário e o local do “ponto” com Wellington, que havia faltado a dois encontros da organização na última semana. O próximo, agendado no Jardim Botânico, confirmaria a sua situação.
Quarenta e cinco anos depois, emocionado, Wellington, que foi preso em 9 de abril de 1970 e torturado por três dias seguidos, desabafa: “Eu não sabia deste infiltrado. Agora entendo que possivelmente ele entregou o local onde fui preso, no Largo do Machado, onde se daria uma reunião entre Lamarca e os quadros de outras organizações de esquerda. Eu fazia a vistoria de segurança quando fui surpreendido. Houve tiroteio e a minha prisão”. Naquele momento, era planejada uma operação para o sequestro do embaixador alemão Elfrid von Holleben. Segundo Maria do Carmo, seria tarefa de Wellington preparar o esconderijo numa propriedade rural no Rio para manter o embaixador. Ao longo de 1970, o sequestro de diplomatas fazia parte da estratégia das organizações de esquerda como forma de resgatar militantes presos. Wellington havia sido levado para a “boate arrepio”, denominação para a sala de tortura do DOI-Codi da Barão de Mesquita. O pau comeu por 72 horas com requintes de crueldade: teve até bisturi rasgando a carne para encostar os fios do choque elétrico nos ossos.
Também conhecido pelos codinomes de Virgulino, Lira e Justino, Wellington, que foi segurança pessoal de Lamarca, exibia em seu currículo 58 ações de “expropriações” a bancos e cofres, como o roubo do cofre de Ana Capriglione, amante do ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. Ele sabia muito, inclusive tinha conhecimento de que parte dos cerca US$ 2,8 milhões carregados do cofre havia sido depositado na embaixada da Argélia. O interrogatório ia e vinha em torno de três nomes do alto-comando da organização clandestina: onde estavam Juarez, Maria do Carmo Brito e Lamarca? E o dinheiro do cofre? Virgulino resistiu. Não falou.
Apesar do silêncio do militante, em 18 de abril de 1970, a polícia repressiva sabia o local do encontro onde um membro da organização faria contato com Wellington. Juarez foi com a esposa, Maria do Carmo, num fusca bege. De longe viram o jipe de Wellington, que fez discreto sinal. Perceberam que o companheiro havia caído. Ele era a “isca”. Juarez e Maria do Carmo deram meia-volta. “Eu estava algemado dentro do jipe, com as pernas presas, mas comemorei, pois acreditei que eles haviam compreendido que eu estava preso”, conta Wellington. Mas não foi assim. Leal e solidário, Juarez não deixaria o amigo, a quem considerava filho. Voltou para resgatá-lo, mas o casal foi cercado por mais de 30 policiais.
PACTO Juarez e Maria do Carmo tinham um trato: na iminência de prisão, quem tivesse a arma mataria o outro e se suicidaria. Ela não cumpriu o combinado. Juarez então arrancou o revólver da mão da mulher e se matou com um tiro no ouvido direito, ao mesmo tempo em que era baleado no braço e no abdômen. “Quando fui presa, o organograma da nossa organização estava completo: eu já estava inserida no cargo de direção que ocupava. Era uma das últimas a cair”, explica Maria do Carmo. Assim como Wellington, ela diz desconhecer a infiltração de Manoel. “Mas faz todo o sentido”, considera. A morte de Juarez, entre tantas, ocorreu em consequência de agentes infiltrados pelo regime nas organizações de esquerda. “Apesar disso, a não ser o caso do Cabo Anselmo, até hoje pouco se soube das estratégias adotadas pela repressão em relação a eles”, explica Heloísa Starling. A documentação analisada pela UFMG aponta três perfis de infiltrados: militares, ex-militantes que passaram a colaborar depois de tortura e pessoas que atuaram por dinheiro, explica a historiadora.
Ponto
As organizações clandestinas chamavam de “ponto” locais de encontro marcado com militantes. Quando o militante não comparecia ao primeiro “ponto”, horas depois havia o que se chamava de “ponto alternativo” para encontro em um outro local. Caso não comparecesse, estava previamente agendado o chamado “ponto de emergência” ou “ponto de resgate” , que ocorreria dias depois em outro local que confirmaria a situação do militante. Se não comparecesse, seria sinal de que tinha sido preso.
Colina
Comando de Libertação Nacional (Colina) foi uma organização esquerda criada em Minas Gerais, à qual pertenceu a presidente Dilma Rousseff. Juarez Guimarães de Brito foi um de seus fundadores. Tanto Colina quanto Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) são dissidências da Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (Polop), organização que se formou no início da década de 1960, antes do golpe militar. Em julho de 1969, Colina e VPR se fundiram formando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, chamada de VAR-Palmares. Três meses depois, divergências políticas no novo grupo levaram a nova divisão, ressurgindo a VPR.
Fonte – EM