COMPANHEIRAS

*Por Rose Nogueira, especial para o site da ABAP

Quando cheguei ao Presídio Tiradentes, nas vésperas do Natal de 1969, só encontrei mulheres desde a carceragem. Uma diretora, as carcereiras – chamadas de “tias” – e as policiais femininas, que me fizeram passar por uma “revista” completa. Depois, por um corredor aberto, onde havia várias celas, uma ao lado da outra, com grades em toda a frente, conheci o que chamavam de presas correcionais. Estavam lá, como diz o nome, para levar “um corretivo”.

Presídio Tiradentes. Avenida Tiradentes, 451, Bom Retiro

Presas na maior parte por prostituição ou “vadiagem”, ficavam ali por um mês, segundo as ”regras penais” da época. Não sei se havia lei nesse sentido. Não tinham direito a visitas, não tinham nada a não ser as roupas do corpo. Por isso, estavam sempre com elas do avesso, para trocar pelo lado direito, mesmo que imundas, no dia em que saíssem. No presídio, os presos correcionais eram chamados de corrós. Sim, havia homens também, em número muito maior, no pavilhão masculino que, como no feminino, abrigavam três tipos de presos: os corrós, os condenados pela justiça comum e nós, os políticos.

Jamais esqueci essas mulheres que não conheci, apenas vi quando passei pelo corredor, ouvindo delas, agarradas às grades: “O que é que você tá fazendo aqui? Hei, ‘política’, olha pra mim, me dá um beijo…”. Esse era o caminho até chegar a um pequeno pátio e, finalmente, à Torre. As paredes grossas, a escada que se abria em duas, o teto muito alto e pouca iluminação natural davam um aspecto de quase medo, que só não era maior porque, para quem vinha do Dops, qualquer lugar longe de lá era melhor.

No mezanino, do lado esquerdo, uma porta grossa com uma janela pequena, onde apareceram dois rostos, numa cena que não me sai da memória até hoje. Dulce Maia e Madre Maurina.

dulceemadre

Imagem do site Torre das Donzelas

Dulce perguntou meu nome e Madre Maurina foi direta: “É você que tem um bebê?” Sim, era eu, que fui presa quando meu filho tinha apenas um mês. “Faça massagem no seio”, foi só o que deu tempo de ela falar. Nem pude lhe contar que havia tomado uma injeção à força, no Dops, para “cortar o leite”. De tudo, sempre penso que foi uma das piores dores que já senti.

A carcereira me levou para a cela da direita e, quando entrei, pela minha lembrança, havia luz, mais luz ainda que veio dos abraços, das lágrimas, das perguntas de quem estava presa sem saber nada do “mundão” há mais tempo do que eu e queria notícias.

Captura de Tela 2016-03-07 às 22.26.08

Rose Nogueira/ Imagem do site Torre das Donzelas

Companheiras. Eram as minhas companheiras, mulheres que conheci ali e que tinham, como eu, uma enorme vontade de viver e mudar o mundo. Cada uma com sua história, sua origem, casadas, solteiras, trabalhavam, estudavam, amavam. Em comum, a luta contra a ditadura.

Chegamos a ser 50, ou mais, ocupando as cinco celas da Torre, quando saí de lá sete meses depois para ficar por mais dois anos e meio em liberdade vigiada, até o julgamento no tribunal militar.

Rose com o filho em 74, na praia de Ipanema (RJ)

Nos ocupávamos de tudo umas com as outras. Escutávamos todos os relatos, líamos coletivamente uma página ou outra de jornal trazida pelas carcereiras, líamos os livros que o juiz permitia que entrassem, fazíamos café e uma ou outra comida no fogareiro elétrico de uma boca; curtíamos os relatos familiares depois de cada visita; fazíamos bordados, tricô e crochê para ocupar as mãos; fazíamos ginástica seguindo um livrinho canadense; discutíamos o setor de cada uma, fosse Educação, Saúde, imprensa, ou mesmo o papel importantíssimo das mães e donas-de-casa, militantes da vida.

E ouvíamos, emocionadas, os terríveis relatos das torturas sofridas por cada uma no Doi-Codi e no Dops antes de chegar à Torre do presídio Tiradentes.

Eu, que como muitas fui trabalhar muito cedo, vinha da reportagem da Folha da Tarde, onde pude escrever sobre a revolucionária Betty Friedan e seu ativismo feminista, e Gloria Steinem, que promoveu o que ficou conhecido como a queima de sutiãs (que não aconteceu, mas ficou sendo) contra um concurso de beleza em Atlantic City, via ali, na minha frente, a melhor representação da mulher brasileira.

Heleny Guariba (Foto: Arquivo Pessoal/Arte Jornal Brasil Atual)

Todas, sem exceção, têm e tiveram uma vida de colaboração humana onde quer que estivessem. As que ficaram presas por vários anos, as que depois morreram na tortura e estão desaparecidas até hoje, como Heleny Guariba, as que foram expulsas da universidade pelo decreto 477, as que foram para o exílio, as que perderam seus empregos por perseguição política e não puderam voltar, as que voltaram para a família, as que escolheram uma vida independente, as que seguiram a vocação política. Todas no caminho da alma generosa, do espírito público, na busca da justiça e de um mundo mais democrático e melhor para todos. Cada uma à sua maneira participando – seja no cotidiano de mães e avós, nas ações mais simples e no pensamento, seja dentro ou fora dos partidos políticos – do dia-a-dia brasileiro, travando o bom combate pela vida. Uma delas, uma de nós, é presidente da República.

Dilma Rousseff durante a ditadura

Ali, nas celas da Torre do presídio Tiradentes, conheci as pessoas mais extraordinárias da minha vida. Mulheres. Companheiras.

mi_1127125802019875

COMPANHEIRAS DE CADEIA Dilma, Eleonora, Guiomar, Rose e Cida na época em que foram presa

*Rosemeire Nogueira é jornalista, militante e presidenta do Grupo Tortura Nunca Mais de São Paulo. Foi presa pela ditadura militar em 4 de novembro de 1969, mesmo dia da morte de Carlos Marighella. Na época, militava na Ação Libertadora Nacional (ALN) e trabalhava no jornal Folha da Tarde

One Comment

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *