Há 45 anos, Estádio Nacional do Chile foi palco de prisões e tortura da ditadura chilena

Local recebeu por volta de 40 mil pessoas, entre presos políticos e torturados; cerca de 400 pessoas foram assassinadas no local, segundo estimativas

Os estádios costumam testemunhar a felicidade e a esperança dos apaixonados pelo futebol. No Estádio Nacional de Santiago, no entanto, a realidade foi completamente oposta a partir do dia 12 de setembro de 1973. O palco de um dos episódios mais tristes da história do Chile viu o canto de alegria dos torcedores dar lugar aos gritos de sofrimento de torturados e assassinados. Há 45 anos, a arena recebia presos políticos durante a ditadura militar comandada por Augusto Pinochet.

O estádio foi usado como uma espécie de prisão improvisada nos dois primeiros meses do regime de Pinochet. Ao todo, 40 mil pessoas passaram pelo local. Autor do livro “La cancha infame: a história da prisão política no Estádio Nacional do Chile”, o jornalista e historiador Maurício Brum explica que milhares de chilenos foram presos somente por conta de sua orientação política, sendo que mais de um terço dos detidos não tinha qualquer relação partidária.

– Era bastante indiscriminado. O governo militar estava perseguindo sobretudo supostos militantes dos partidos de esquerda, buscavam pessoas que tinham suspeita. Do total de prisioneiros, 36% não tinham nenhuma relação com a militância. Claro que não seria menos problemático prender só pessoas ligadas à militância, mas esse número mostra que muitos não tinham nenhuma relação – disse Maurício ao Globoesporte.com.

Maurício explica outras construções esportivas foram improvisadas para receberem presos políticos. O Estádio Nacional, por ser um complexo esportivo, tinha outras instalações sendo usadas pela ditadura, com destaque para o velódromo, onde os episódios mais violentos foram registrados. O jornalista destaca que muitos casos de violência psicológica foram reportados: militares davam tiros para o alto, simulando execuções.

“Há estimativas de em torno de 400 mortos no estádio”, explica Maurício.

O alto-falante que antes anunciava nomes de jogadores substituídos, advertidos ou que balançaram as redes a passou chamar os que seriam interrogados e torturados pelos comandados de Pinochet.

Foi justamente o futebol que colocou um fim no uso do Estádio Nacional como prisão política. Na disputa da repescagem para a Copa do Mundo de 1974, Chile e União Soviética lutavam por uma vaga na competição. Na partida de ida, 0 a 0 em Moscou. Na volta, o duelo seria no estádio. Os soviéticos, então, se recusaram a entrar em campo, e os chilenos venceram a partida, com direito a gol sem adversário (veja no vídeo abaixo).

– Um jogo que, curiosamente, era com a União Soviética, ideologicamente o oposto do Chile. O estádio foi evacuado às pressas para o jogo acontecer. A URSS se negou a jogar, porque o local foi uma prisão e havia relatos de execução. Eles disseram que jogariam em qualquer lugar, menos ali. A Fifa não aceitou, e o Chile ganhou de WO e foi para a Copa – conta Maurício.

 

Assim como aconteceu no Brasil, os militares tentaram usar o futebol como propaganda da ditadura. Após a classificação, um amistoso com o Santos foi marcado para comemorar a classificação ao Mundial, de acordo com Brum. No entanto, o público não compareceu como esperado, e o time não correspondeu em campo – o Peixe aplicou uma goleada nos chilenos.

– A ditadura tentou usar como símbolo de unificação nacional. “Vamos comemorar a classificação para a Copa.” Sem os soviéticos, convidam o Santos. A ideia era ter o estádio cheio, celebrar a classificação, um Chile pacificado por uma semana. O estádio ficou bem vazio, talvez 20 mil onde cabem 80 mil. O Santos venceu por 5 a 0 e acabou com a festa – disse Maurício.

Memória

O Chile parece se esforçar para não deixar a ditadura cair no esquecimento. Dentro do Estádio Nacional, a estrutura de 1973 é preservada na “Escotilla 8” (saída 8). O corredor de acesso também faz parte do um memorial, que conta com a seguinte frase na arquibancada:

“Um povo sem memória é um povo sem futuro”

O jornalista chileno Danilo Díaz explica que o país sempre se mobiliza nos aniversários do golpe sofrido pelo presidente Salvador Allende.

– O Chile sempre se lembra. É uma data que marca a política chilena e a convivência nacional. O país sempre se lembra dos desaparecidos, mortos e todos os afetados a tragédia que marcou profundamente a sociedade chilena.

No último sábado, partida entre Universidade de Chile e Palestino, pela Copa do Chile, os jogadores da La U Isaac Díaz e David Pizarro levaram flores à Escotilla 8, em homenagem aos presos, torturados e mortos no local durante a ditadura no país (veja o vídeo abaixo).

– Eles estao muito à frente de nós. Não somente porque têm um museu da memória gigantesco, mas também porque têm políticas muito à frente. Em 1990, o Chile já contava com a comissão da verdade. Também tem a lei da anistia, mas casos de desaparecidos não contam pra lei, com isso, vários militares acabam sendo punidos. O próprio Pinochet fugiu por conta das acusações de violação dos direitos humano e corrupção. Há uma valorização muito mais clara da memória – afirma Maurício.

A ditadura militar brasileira terminou em 1985, cinco anos antes do fim do regime no Chile. Enquanto a Comissão Valech foi criada no mesmo ano do término do comando de Pinochet, a Comissão Nacional da Verdade do Brasil deu seus primeiros passos somente em 2011, 26 anos depois.

Fonte – GE