Tortura de crianças, cobertura a casos de pedofilia que chocaram o país e outros casos desmentem o mito propagado por admiradores do regime
A lista de crimes cometidos sob a anuência, ou sob influência direta da ditadura militar é chocante. E extensa. Para além dos casos envolvendo a prisão, morte e tortura de adversários políticos, o regime também acobertou crimes contra cidadãos cujo envolvimento nas chamadas atividades subversivas jamais foi atestado. Inclusive crianças.
Seja pelo sequestro de filhos de militantes capturados, seja acobertando os casos de pedofilia que chocaram o país nos anos 70, o fato é que o mito propagado pelos admiradores do regime, de que a ditadura só teria punido “terroristas” não passa de ilusão revisionista.
A Comissão da Verdade concluiu, em 2014, que 434 pessoas morreram ou desapareceram durante as duas décadas e meia de ditadura. Também foram assassinados, conforme o relatórios, 8.350 indígenas.
Confira a seguir.
Araceli e Ana Lídia: horror e impunidade
Os casos têm muito em comum. As duas meninas, assassinadas brutalmente, e cujos culpados jamais foram punidos por influência da ditadura. Araceli e Ana Lídia foram mortas, respectivamente, em maio e setembro de 1973 — a primeira em Vitória e Ana Lídia, em Brasília . Tinham entre 7 e 8 anos.
Araceli Crespo ficou sequestrada por dois dias, durante os quais for repetidamente estuprada e dopada. Foi encontrada morta seis dias depois, em um matagal. Dos dois principais suspeitos do crime, um era filho de Dante Michelini, um latifundiário que gozava de grande influência junto ao governo militar. A denúncia da época mostrava que Michelini pai havia usado as suas ligações para dificultar as investigações. Apesar de terem sido condenados, os acusados sairiam impunes depois que a sentença foi anulada nas instâncias superiores.
No caso de Ana Lídia Braga, a investigação foi abafada assim que começaram a aparecer suspeitas de que o filho do então Ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, estaria envolvido no crime. Em 1974, a ditadura emitiria uma ordem expressa à imprensa proibindo falar do crime. O processo acabou sendo arquivado sem que se avançasse nas investigações.
Carlos Alexandre Azevedo, torturado ainda bebê
É considerado o mais jovem preso político a ser torturado no Brasil. Carlos Eduardo tinha apenas 1 anos e oito meses quando os policiais invadiram a casa de sua família, em São Paulo, e o arrastaram para a sede do Deops, em São Paulo. A mãe seria presa horas depois. O pai, o jornalista Dermi Azevedo, já estava lá. A equipe liderada pelo delegado Sérgio Fleury, levou o bebê até São Bernardo do Campo e o torturou por quinze horas com choques elétricos e pancadas. Cacá, como era chamado, nunca se recuperou dos traumas sofridos àquela época. O caso voltou ganhou notoriedade em 2010, quando ele foi finalmente reconhecido como vítima da ditadura. Em entrevista à Istoé na época, ele revelou sofrer fobia social desde a infância, e que usava antipsicóticos e antidepressivos. Cometeu suicídio três anos mais tarde, aos 40 anos de idade.
Madre Maurina
Madre Maurina e Dom Paulo Evaristo Arns, quando a religiosa voltou ao Brasil após o exílio (Memorial da Democracia/Reprodução/CPDocJB)
Madre Maurina foi a única freira presa e torturada pela ditadura, sem qualquer prova formal. Foi detida em 1969, em frente ao orfanato de meninas que coordenava, em Ribeirão Preto. Na época, o lugar palco também de reuniões de jovens cedido para de associações cristãs de jovens. Uma delas, porém, era disfarce para um movimento revolucionário. Sem saber, Maurina deu guarida a militantes das Forças Armadas da Libertação Nacional (Faln), que ela havia pensado fazerem parte do Movimento Estudantil Jovem (MEJ). Quando a célula foi desmantelada, os policiais chegaram à religiosa. Durante cinco meses, Madre Maurina foi torturada, submetida a sessões no pau de arara e a choque elétrico. Uma colega de cela relatou à Comissão da Verdade em 2014 que Maurina também era estuprada pelos torturadores. Ela só admitiria a violência à jornalista Denise Assis, autora de um livro inspirado na história da religiosa, mas jamais confirmou a história publicamente. Libertada, mas jamais inocentada pelo regime, passou 15 anos em exílio forçado no México. Morreu aos 2011, aos 84 anos.
Irmãos Nascimento: prisão e exílio
Zuleide e dois de seus irmãos: fichados no Dops como terroristas
As fotos carimbadas pelo Dops não deixam dúvidas: eis aí perigosos (e pequenos) terroristas. Zuleide Nascimento tinha só quatro anos quando foi “capturada” junto aos irmãos de 2, 6 e 9 anos de idade, em 1970. A família havia se engajado na luta armada com a Vanguarda Popular Nacional, de Carlos Lamarca. Quando o grupo foi preso, as crianças foram junto. O mais novo deles, Ernesto, acompanhou os pais nas prisões clandestinas e, ainda bebê, presenciou as torturas do pai. Depois, os quatro acabaram metidos em um avião em direção à Argélia, e depois a Cuba, em uma negociação da esquerda com o governo militar que envolveu o sequestro do então embaixador alemão Ehrenfried von Holleben. Zuleide e os irmãos só seriam autorizados voltar ao Brasil mais de dez anos depois.
Abortos forçados e sequestro de bebês e a família de militares
O livro Cativeiro sem Fim, do jornalista Eduardo Reina, conta a história de dezenove bebês, crianças e adolescentes sequestrados e entregues a famílias de militares e pessoas ligadas à repressão. Nesse ponto, é verdade, não foi tão presente quanto na ditadura argentina. Enquanto os militares platinos viam os filhos de inimigos um tesouro nacional a ser moldado — daí o número expressivo de bebês e crianças sequestrados ou adotados ilegalmente — os brasileiros, de forte formação positivista, não poupavam as grávidas do terror da prisão. As comissões sobre a ditadura a partir dos anos 90, em especial a Comissão da Verdade, trouxeram à tona vários relatos de mulheres que tiveram o aborto forçado na prisão, e de bebês que sobreviveram à tortura das mães.
É o caso de Rosa Maria Barros dos Santos, presa em Recife, que passou por “um sangramento cheio de coisas” logo após o início das torturas. Só entendeu o que estava acontecendo quando recebeu comprimidos de ácido acetilsalisílico (AAS), que pode facilitar abortos. Sofreu uma perda completa.
Operação Camanducaia, violência e violações
Em outubro de 1974, diante das reclamação de que menores em situação de rua ocupavam as ruas no centro de São Paulo, o governo do estado montou uma operação para recolher esses jovens. Cerca de 300 garotos levados ao Deic, e espancados. Depois, 93 deles foram despejados nus, na calada da noite, próximo à cidade mineira que dá nome à operação. Nus, feridos e com o frio, os menores vagaram por estradas da região, até alcançarem o perímetro urbano da cidade, que recebeu com pânico e perplexidade os “dejetos” paulistanos. O caso foi investigado — a promotoria chegou a oferecer denúncia contra 14 delegados e 7 policiais — mas jamais foi levado à julgamento, por interferência das autoridades respaldadas pela ditadura militar.
Fonte – CartaCapital