Violência alinhou Brasil a ditaduras sul-americanas no século 20

Operação interligada de serviços de inteligência para perseguir opositores dos regimes militares transformou a relação entre os países

As histórias do Chile, Paraguai, Brasil, Argentina e Uruguai compartilharam um mesmo momento de trevas na segunda metade do século passado. Todos esses países sul-americanos tiveram que conviver com ditaduras militares. A sincronia entre os países não foi apenas nas datas em que governos autoritários substituíram presidentes eleitos pela população. Ela foi além, em laços de cooperação nunca vistos até então, patrocinados essencialmente pela agenda comum de perseguição, sequestro, tortura e assassinato de militantes e opositores.

Antes dos anos de chumbo, reinava no continente um clima de tensão entre os países vizinhos. Contudo, os regimes autoritários que tomaram o poder entre 1954 e 1973 impuseram importantes mudanças nessa agenda regional.

Uma das alterações mais impactantes nas relacões internacionais do continente foi o surgimento de uma ação articulada das forças armadas e serviços de inteligência dos países, a Operação Condor.

Iniciada em 1968 com os governos militares de Brasil, Argentina e Paraguai, com as bençãos do governo de Lyndon B. Johnson, nos EUA, tinha como objetivo facilitar o intercâmbio de informações e a entrada e saída de agentes de segurança nos países vizinhos para caçar os considerados “inimigos” pelos regimes ditatoriais.

Assim, os militares do Brasil poderiam entrar na Argentina ou no Uruguai em busca de militantes brasileiros que estivessem tentando fugir da ditadura para outros países e vice-versa.

Os governos ainda trocavam informações de inteligência sobre os paradeiros dos opositores, que eram imensamente vigiados.

Posteriormente, os governos do Chile e do Uruguai, que passaram a ser controlados por militares em 1973, também se juntaram à operação. A medida ainda contou com o apoio do governo boliviano.

A Operação era secreta e registros oficiais que compravavam a existência da relação internacional e estavam classificados como confidenciais pela CIA só foram divulgados pelo governo de Bill Clinton na década de 1990.

O ‘Sequestro dos Uruguaios’

Um dos casos mais conhecidos da Operação Condor foi o “Sequestro dos Uruguaios”. Em 1980, membros do Exército uruguaio viajaram para Porto Alegre e tentaram sequestrar clandestinamente os militantes Universindo Rodríguez Díaz e Lilian Celiberti, junto com seus dois filhos, Camilo e Francesca.

Lilian e sua família sobreviveram à Operação Condor

A família estava buscando refúgio no Rio Grande do Sul. Posteriormente ficou comprovada a participação de agentes brasileiros no episódio.

Porém, os militares foram surpreendidos pelo repórter Luiz Cláudio Cunha e o fotógrafo João Baptista Scalco.

Alertados por um telefonema anônimo, os jornalistas chegaram ao apartamento da família na capital gaúcha quando os militares ainda mantinham Lilian em cárcere.

Eles foram levados para Montevidéu, mas se tornaram os únicos alvos conhecidos da Operação Condor a escapar com vida.

Mais de três décadas de horrores

De acordo com o professor e pesquisador José Alves de Freitas Neto, da Unicamp, especialista em ditaduras militares na América Latina, as ditaduras latino-americanas do século XX surgiram no contexto da Guerra Fria, quando mulheres e trabalhadores começavam a participar de vida pública e o populismo ganhava força na região.

“A resposta aos populismos foi o autoritarismo que as ditaduras impuseram. Nesse sentido, ao invés do país amadurecer democraticamente, houve um recrudescimento”, conta.

Mas cada uma dessas ditaduras assumiu um perfil diferente em relação à forma de estabelecer o controle social sobre a população. Ou seja, diferentes formas de organizar o aparato policial e o uso de violência, porém sem que nenhuma deixasse de fazê-lo.

Freitas Neto revela que, proporcionalmente, a ditadura militar paraguaia — a primeira a ser decretada em 1954 e também a mais longeva — foi a que causou mais vítimas. Cerca de 20 mil pessoas foram presas, torturadas ou perseguidas pelo regime.

Para efeito de comparação, em 1989, quando Alfredo Stroessner foi deposto 35 anos depois de tomar o poder, o país tinha pouco mais de 4 milhões de pessoas. Isso significa que 1 em cada 133 pessoas foi diretamente atingida pela ditadura paraguaia.

Execuções abertas, voos da morte, tortura e censura

No caso chileno, por exemplo, a violência era mais escancarada. Não se sabe quantos milhares de chilenos morreram ao total, mas casos como o das execuções em massa no Estádio Nacional dão a dimensão da violência praticada pela ditadura do general Augusto Pinochet.

Não existem estimativas definitivas sobre estas execuções, mas especula-se que pelo menos 400 pessoas foram mortas durante os dois meses em que o estádio foi transformado em prisão. Pelo menos 40 mil chilenos, teriam passado por ali.

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Já na Argentina, a violência pode ser considerada mais discreta, no entanto causou grandes estragos. Os registros informam que pelo menos 30 mil cidadãos argentinos desapareceram durante a ditadura militar.

Os chamados “voos da morte” foram uma prática comum na Argentina. Os militares levavam os presos em helicópteros e pequenos aviões e os atirava no Rio de la Plata ou no mar.

Para além das mortes, também houve muitos casos de tortura.

Comissão Nacional da Verdade brasileira reconheceu 434 mortes e desaparecimentos durante os 21 anos de ditadura militar.

O número menor que o de nossos vizinhos acontece, segundo Freitas Neto, porque no Brasil era mais comum a perseguição política, o exílio e a censura.

Ainda assim, os restos mortais de muitas vítimas da ditadura nunca foram encontrados.

Sequelas e legados

Em uma perspectiva geral, as nações sul-americanas voltariam a ver a luz da democracia no início dos anos 1990.

Cada país resolveu lidar com as sequelas e legados dos regimes militares de formas diferentes. No Brasil, foi assinada a Lei da Anistia, que decretou que todos os exilados políticos poderiam voltar à terra natal, mas também impediu a condenação dos militares por crimes contra a humanidade.

“O modo como o Brasil enfrentou seu passado foi uma política deliberada de esquecer“, declara o professor da Unicamp.

O Chile, que é considerado um exemplo na forma em como tratou com o pós-ditadura, só pôde lidar com seus traumas depois que o ditador Augusto Pinochet foi preso em Londres, em 1998.

Desde o fim de seu governo, Pinochet havia assumido o cargo de Senador vitalício para impedir punições em seu próprio país.

Atualmente, a ditadura é um assunto incômodo que não recebe elogios abertamente. Além disso, o Estádio Nacional, onde ocorreram prisões e execuções tem uma parte que se tornou um museu destinado a conscientizar sobre os horrores da Ditadura.

Investigações na Argentina e no Uruguai

Argentina foi único país a punir generais

 

Na Argentina e no Uruguai tampouco houve leis de anistia. Mas tão logo governos democráticos assumiram o poder, começou a haver investigações de crimes investigados.

Os generais que governaram a Argentina durante o período militar foram duramente punidos. Um caso emblemático é o de general Jorge Rafael Videla que foi encontrado morto no banheiro de sua cela na cadeia em 2013.

Seu corpo ficou no necrotério por uma semana até que sua família o enterrou, com quase nenhuma identificação e nenhuma honra militar em um cemitério de Buenos Aires.

No Uruguai, a virada política foi tamanha que José Alberto “Pepe” Mujica, um opositor à ditadura que ficou preso clandestinamente por 12 anos se tornou presidente do país em 2010.

Reflexos diplomáticos

As relações estabelecidas pelo terror das ditaduras entre os países sul-americanos tiveram reflexos mesmo após a redemocratização. No lugar de reuniões sobre como prender e exterminar opositores, surgiram discussões sobre como ampliar o comércio entre estes países.

“O estranhamento e o isolamento que havia antes dos anos 1950, onde os países se viam como rivais, isso desapareceu”, diz Freitas Neto.

Os projetos de integração que resultaram no Mercosul acabam tendo esta origem dolorosa.

Mas as “boas relações” entre ditadores também facilitaram situações de impunidade.

O ditador paraguaio Alfredo Stroessner fugiu para o Brasil depois que foi deposto, evitando punições. Morreu em Brasília, em 2006.

Fonte – R7