A resistência dos advogados à ditadura de 1964, por Eny Moreira

Os processos julgados na justiça militar espelharam o agir do Poder Judiciário como instrumento da repressão, bem como a sua submissão ao Executivo, aplicando as leis, decretos e regulamentos draconianos ditados pelo regime.

A resistência dos advogados à ditadura de 1964

por Eny Moreira 

A justiça militar, criada em 1889, foi usada para solução dos conflitos políticos desde o governo de Deodoro da Fonseca (1889/1891), de Floriano Peixoto (1891/1904), de  Getúlio Vargas, durante o Estado Novo (1937/1945).

Consumado o golpe militar em 1º de abril se 1964, o “Comando Supremo da Revolução”, integrado pelos general Arthur da Costa e Silva, o vice-almirante Augusto Radmaker e o tenente brigadeiro Francisco de Assis Correia de Melo, editou, no dia 9, daquele mês, o Ato Institucional nº I (AI-1), em cujo preâmbulo havia a justificativa para a deposição do Presidente João Goulart – legitimamente eleito e empossado:

“Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País.”

O artigo 7º,§ 1º do AI-1, permitiu aposentar ou demitir, por decreto presidencial, servidores públicos e membros do poder judiciário, e o  artigo 8º autorizou a instauração de inquérito policial militar ou processo para averiguar a prática de crimes contra o Estado, a ordem política e social e atos de guerra revolucionária.

O Código de Justiça Militar (CJM) estabelecia ser função do Superior Tribunal Militar (STM) o processo e julgamento de habeas corpus quando a coação emanasse de autoridade militar, administrativa, ou judiciária. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a Constituição de 1946, era o foro constitucionalmente responsável pelo julgamento dos ilícitos praticados em desfavor do Estado e da ordem política e social.

Até então, à justiça militar só competia decidir acerca dos crimes praticados por civis contra a segurança externa.

O STF, a princípio, entendeu ser do STM a competência para conhecer e julgar habeas corpus, mas logo mudou sua posição e, até o AI-5, passou a acolher aquele remédio, determinando, a mais das vezes, a liberdade do preso e/ou o trancamento da ação penal.

Nas casernas, a oficialidade protestava contra as decisões do Judiciário, por entender que elas atrapalhavam os desígnios do regime e exigiu providencias do palácio para que os opositores do “movimento revolucionário” fossem julgados na justiça militar. Para se tornar legítima, a repressão precisava ajustar-se a uma estrutura  legal e jurídica.

Aquele protesto encontrou eco: em agosto de 64, a imprensa noticiou que a seção paulista do Instituto dos Advogados do Brasil, com apoio do STM, elaborara um projeto de emenda constitucional destinado a ampliar a competência da justiça militar para julgamento de civis acusados de delitos contra a segurança interna.

Em outubro de 1965, foi editado o Ato Institucional nº 2 (AI-2), que ampliou a competência da justiça militar; aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), de 11 para 16; e suspendeu as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade dos juízes.

Restringiu-se, de um lado, o acesso ao Poder Judiciário, impedindo-o de exercer o controle sobre determinadas matérias, e de outro, possibilitou-se a interferência, pelo presidente da República, na estrutura e composição das instituições judiciárias, mediante criação e extinção de cargos e aposentadoria de magistrados.

Assim, a partir de 1964, a justiça militar voltou a funcionar como suporte jurídico no processo de legitimação do regime, operando como espaço de punição aos opositores da ditadura e auxiliar no processo de perseguição política.

Os processos julgados na justiça militar espelharam o agir do Poder Judiciário como instrumento da repressão, bem como a sua submissão ao Executivo, aplicando as leis, decretos e regulamentos draconianos ditados pelo regime. Pode-se citar como primeiro exemplo de subversão do judiciário a prisão de 9 chineses, o que serviu para justificar o golpe de 1964.

Em 1961, o então presidente Jânio quadros iniciou tratativas com o governo da China visando estabelecer um intercâmbio comercial entre os dois países. Para concretizar tal propósito, 9 cidadãos chineses vieram ao Brasil e o vice presidente João Goulart, chefiou a Missão Brasileira enviada a China.

Os 9 chineses estiveram no Brasil e, especificamente, no Rio de Janeiro, de 1961 a 1964, sob fiscalização permanente e direta da polícia civil e dos agentes do Conselho de Segurança Nacional.

Com a renúncia de Jânio Quadros, João Goulart foi empossado na Presidência da República, até que, em 1º de abril de 1964, irrompeu o movimento militar armado que o depôs, forçando-o a deixar o poder.

No dia 3 de abril, os 9 chineses foram presos, conduzidos ao DOPS, fichados e torturados. Ali o delegado Gustavo Borges os interrogou, em português, sem a presença de um intérprete e sem que entendessem as perguntas feitas.

Com eles foram apreendidos “manuscritos”, (cuja tradução revelou tratarem-se de versão da Constituição brasileira para a língua chinesa); “farto material de propaganda subversiva,  e “agendas escritas em chinês”.

As agendas, denominadas impropriamente de “Diários”, receberam tradução forjada por Theodore Wu, um chines de Formosa, e ofereceram a oportunidade para o delegado  afirmar haver prova documental a respeito das atividades subversivas e da espionagem imputadas àqueles 9 cidadãos chineses.

Nenhuma  destas “provas” jamais foram exibidas em juízo.

Os 9 chineses foram denunciados pela prática de três crimes contra a segurança nacional e condenados a 10 anos de prisão. O marechal Humberto de Alencar Castelo Branco os expulsou.

Dr. Sobral Pinto, foi o defensor dos 9 chineses e desnudou a farsa, afirmando que os militares tentaram, com aquele processo, provar que o Presidente João Goulart era comunista e, por isso, providenciaram a sua deposição.

A ditadura seguiu prendendo e processando dirigentes e participantes de organizações sociais, sindicatos, confederações de operários, professores, estudantes, artistas, jornalistas,  militares…

E continuaram a providenciar as alterações no arcabouço jurídico: em 1969, houve a edição de dois novos decretos-leis de segurança – o de nº 510, e o nº 898; a edição do Ato Institucional nº 14 (AI-14), instaurando a pena de morte, de prisão perpétua, o banimento e criados novos tipos penais.

Foram reformulados o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar, e criados ou remodelados os centros de informação e segurança das três armas: do Exército (Ciex), da Marinha (Cenimar), da Aeronáutica (Cisa), a Operação Bandeirantes – embrião dos CODI-DOI.

Os advogados tivemos de usar intensa criatividade para defender os prisioneiros políticos, enquanto o judiciário foi abandonando princípios democráticos já incorporados à nossa tradição jurídica, para atender aos reclamos das casernas.

Essa forma de agir fica evidente no RECURSO CRIMINAL Nº 1.169, que tramitou no Supremo Tribunal Federal (STF): o acusado foi condenado duas vezes nas penas do artigo 14 da Lei de Segurança Nacional (DL 898/69), por pertencer e manter a “Var Palmares”.

No primeiro processo, a decisão transitou em julgado, é dizer, tornou-se definitiva. A defesa arguiu a nulidade da segunda condenação porque o crime capitulado no artigo 14 da LSN tinha natureza permanente.

Essa tese foi acolhida pelo Relator, mas o ministro Cordeiro Guerra   pediu vista dos autos e votou discordando da decisão anterior:

Creio que ninguém sustentaria que um explorador do lenocínio – na  modalidade de manter local para encontro para fins libidinosos condenado no Paraná em 1968, ficaria impune, por igual prática, em 1969, no Estado da Guanabara, por ser o crime permanente, e já ter sido punido anteriormente, pelo primeiro fato.”

O Supremo Tribunal Federal comparou o crime político ao lenocínio e colocaram por terra o entendimento que impedia violar a garantia do cidadão de não se ver julgar duas vezes pelo mesmo crime.

Durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici – o mais repressivo do regime militar e conhecido como “os anos de chumbo” –, cresceu ainda mais o número de pessoas presas, processadas e julgadas pela Justiça Militar. Foi quando ocorreram mais mortes, desaparecimentos forçados, torturas. Nesse período, o aparelho repressivo do Estado revelou-se em toda a sua “fúria persecutória”:

Na 2ª Auditoria da Aeronáutica do Rio de Janeiro, oito pessoas  sofreram acusação de terem assaltado uma Kombi da empresa Moinho da Luz, no dia 29 de dezembro de 1970. No dia do interrogatório, os presos se recusaram a responder às perguntas do Auditor, sem a presença de advogado.

Foram condenados, cada um a 15 anos de reclusão e 10 anos de suspensão de direitos políticos. Recorreram e STM (Apelação 40.163), unanimemente manteve a condenação fazendo constar do acórdão que:

cumpria aos acusados contestarem essa prova e oferecerem também provas de que o que declararam na polícia não era verdadeiro.” (…) “Impunha-se-lhes destruir esses elementos que os acusavam e não quedar-se na recusa inexplicável de esclarecer à Justiça seu comportamento.”

O Tribunal Militar não podia ignorar o princípio geral de Direito, segundo o qual não cabe ao acusado, em hipótese alguma, provar que não é culpado do crime que se lhe acusam. Muito menos a ele incumbe provar que a declaração na polícia lhe fora extorquida.

Em todos os processos e, em todas as instancias, houve menção à prova. Tratou-se de a ela se referir para arrimar raciocínios condenatórios, para alicerçar convicção de culpabilidade dos réus, para impor validade às decisões.

Mas nunca se desnudou a prova. Desnuda-la significava relega-la ao porão de onde surgiu, significava revelar todo o procedimento anti-legal na produção de elementos destinados a fundamentar a propositura da ação penal e daqueles produzidos durante a instrução criminal para sustentar a sentença – como motivos de fato e de direito.

O Poder Judiciário não mantinha posição; revelou-se hesitante, ambíguo, ora se apresentando como poder autônomo, ora concordando com a linha política dominante, mas continuou sempre a acirrar os ânimos nos quartéis, principalmente entre os coronéis dos IPMs.

Raras vezes, o caráter punitivo e a legalização da violência era atenuado por decisões lastreadas nas leis. Houve juízes que se manifestaram no exato exercício de seu papel: aplicaram a lei, respeitaram a doutrina, não feriram a jurisprudência.

*

E chegamos ao governo Geisel, que foi marcado, de um lado, pelo intuito de “distensão lenta e gradual”, e, de outro, pelo furor das forças de segurança. Em 1975, preso e torturado no DOI CODI de São Paulo, foi assassinado o jornalista Wladmir Herzog. O mesmo ocorreu com o operário Manoel Fiel Filho, meses depois, em 1976. Em consequência, o Presidente Ernesto Geisel exonerou o Comandante do 2º Exército, gal. Ednardo dÁvila.

Foi nessa época que teve início a campanha pela Anistia, com a fundação do Movimento Feminino pela Anistia.

Em 13 de outubro de 1978, o Presidente Geisel aprovou no Congresso Nacional a Emenda Constitucional nº 11, suspendendo os Atos Institucionais, abolindo as penas de morte, de prisão perpétua e de banimento e reintroduziu o habeas Corpus para crimes políticos e iniciou o abrandamento a censura à imprensa.

A linha mais radical incrustada nos órgãos de repressão, inconformada, cuidou de explodir bombas na Ordem dos Advogados do Brasil, matando a secretária D. Lida Monteiro; e no Riocentro, quando o artefato estourou no colo do Sargento Rosário e feriu o capitão Machado…

O governo do Presidente João Batista Figueiredo, chegou com a incumbência de fechar o ciclo militar no poder.

No Rio de Janeiro, em 1978, foi fundado o Comitê Brasileiro pela Anistia, com o apoio do gal. Peri Bevilacqua. Na noite do lançamento, o gal. proferiu discurso denunciando o até então desconhecido caso “Parasar”: o brigadeiro João Paulo Burnier convocara a tropa de elite da Aeronáutica, para explodir bombas em diferentes locais onde houvesse densa concentração de pessoas, cujo objetivo era culpar os opositores do regime e impedir o processo de abertura.

E veio a nova LSN (6.620), editada em 17 de dezembro de 1978, que foi considerada “mais branda”, muito embora tenha mantido a pena máxima de 30 anos para alguns crimes.

Em 29 de agosto de 1979, foi promulgada a Lei de Anistia.

Os exilados voltaram e, porque a nova LSN diminuiu as penas dos condenados que ainda as cumpriam, abriram-se as portas dos presídios, na tentativa do governo passar a impressão que a anistia fora ampla, geral e irrestrita, como reivindicada pela sociedade civil.

Em todas as esferas do Judiciário foram feitas denúncias de graves violações de Direitos Humanos. Mesmo havendo delas registros e evidencias, não eram providenciadas medidas nem para apurar, nem para fazer cessar.

É preciso dizer que, nem o STM, nem o STF, ordenaram investigar as inúmeras denúncias de tortura, o que levou a Comissão Nacional da Verdade afirmar que o Poder Judiciário “consolidou-se como arauto da ditadura”.

E, como muito bem diz a historiadora Angela Moreira:

“O STM esteve presente, como braço jurídico, na cadeia de manutenção da segurança nacional organizada ao longo do Regime.”

O Brasil foi o único país da América Latina, entre aqueles submetidos a ditaduras militares nos anos 60/80, a utilizar-se do Poder Judiciário para punir seus opositores, com o objetivo de auferir legitimidade.

Foi nesse cenário que os advogados tivemos de trabalhar, sem contar que muitos fomos presos, sequestrados durante aquele período.

*Eny Moreira –  advogada de presos políticos durante a ditadura militar

FONTE – GGN