STJ julga se portaria que anulou anistias feriu devido processo legal

Publicado originalmente em 25 de novembro de 2020, 21h23

 

A 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça começou a enfrentar, nesta quarta-feira (25/11), mandados de segurança impetrados contra o ato administrativo da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), que em junho anulou a declaração de anistia política de quase 300 pessoas. Os afetados são cabos da Aeronáutica perseguidos politicamente.

Foram colocados em julgamento 11 ações mandamentais, de relatoria do ministro Napoleão Nunes Maia e interrompidas por pedido de vista do ministro Og Fernandes. Em outros cinco mandados de segurança, de relatoria do ministro Sérgio Kukina, a seção negou agravo regimental contra a decisão que indeferiu a retomada do pagamento de precatórios aos anistiados.

Embora as causas de pedir sejam variadas, o cerne da discussão é saber se o procedimento de revisão e anulação das anistias concedidas foi conduzido em flagrante violação ao direito de defesa e, consequentemente, ao devido processo legal.

A discussão é baseada na decisão de outubro de 2019, quando o Supremo Tribunal Federal definiu que existe a possibilidade de um ato ser anulado pela Administração Pública mesmo depois de decorrido o prazo decadencial de cinco anos.

O julgamento tratou das anistias concedidas com fundamento na Portaria 1.104/1964, em que o governo militar afastou dos quadros da aeronáutica cerca de 2,5 mil pessoas. Em 2002, a Comissão de Anistia apontou que a norma foi editada por motivação política. Assim os perseguidos pela ditadura passaram a receber ressarcimento em 2002.

Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o valor pago aos militares anistiados chega a R$ 3,9 bilhões. Caso o STF não tivesse autorizado a anulação, o Ministério da Defesa, responsável pelo pagamento dos benefícios, poderia ter que desembolsar, de uma só vez, R$ 13 bilhões para o pagamento de indenizações retroativas.

Desde então, o Superior Tribunal de Justiça fez os ajustes cabíveis a partir da decisão do Supremo. Em fevereiro, o então presidente, ministro João Otávio de Noronha, suspendeu por liminar o pagamento de 235 precatórios a militares anistiados. Em junho, negou a segurança a um cabo que visava obter o cancelamento da anulação.

Anistia aos cabos perseguidos pela ditadura começou a gerar pagamentos via precatórios a partir de 2002

Ao determinar a revisão, o STF apontou que deveria ser respeitado o devido processo legal, e que não poderá a União pediria a devolução das verbas já recebidas pelos beneficiários. Segundo os afetados pela anulação, as irregularidades variam entre o cerceamento de defesa até o fato de a revisão ter ocorrido antes do trânsito em julgado da decisão do Supremo.

Nas portarias, a ministra justifica a anulação pela suposta “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. No único voto até agora proferido, o ministro Napoleão apontou que essa justificativa não é suficiente para a supressão do benefício. Por isso, votou pela concessão da segurança.

Ônus da prova
Para o relator, as condicionantes impostas pelo Supremo para a revisão da anistia após os cinco anos de prazo decadencial não foram cumpridas pelas portarias do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

O Supremo admitiu a revisão se o governo comprovasse a ausência de motivação política no afastamento dos cabos da Aeronáutica. O governo, por sua vez, cancelou porque entendeu que os cabos não comprovaram a existência de motivação política no mesmo ato.

Para ministro Napoleão, anulação das anistias desrespeitou decisão do Supremo

Segundo o ministro Napoleão, não houve explicação suficiente a possibilitar a ampla defesa e o contraditório por parte dos afetados. Assim, não se deve admitir como legítima a prática imotivada de um ato que, ao ser contestado em via judicial ou administrativa, conduz o gestor a construir algum motivo que dê ensejo à validade do ato administrativo. A motivação a posteriori solapa a garantia de defesa.

“Talvez queiramos passar uma borracha nessa fase recente do Brasil. Dizer que não houve perseguição política de ninguém. Se o Supremo diz que é possível fazer a revisão quando se comprovar a ausência de motivação política, quem tem que comprovar ausência é quem exonerou o sujeito”, disse Napoleão. “Se o sujeito foi posto pra fora sem se saber por que, isso é a perseguição política”, acrescentou.

Destacou ainda a inviabilidade de, 20 anos após a concessão da anistia, pedir prova da motivação de ato ocorrido há mais de 50 anos. “O problema está sendo criado pela má vontade contra os anistiados. Esse problema não existe. É só a administração mostrar por que o sujeito foi desligado”, concluiu.

Plenário do STF admitiu a revisão das anistias mesmo após decadência do direito

Cabimento de MS
A matéria rendeu discussão sobre o alcance da discussão em mandado de segurança. A ministra Regine Helena Costa por entender que só cabe quando verificada ofensa ao devido processo legal. “Questionar a anulação em si, inclusive para discutir prova, não vejo como se possa apreciar em sede mandamental”, disse.

O ministro Mauro Campbell contextualizou a discussão para explicar que a hipótese é de reavaliar se, entre os cabos afetados pela portaria de 1964, não estão pessoas não-perseguidas, conforme levantado por órgãos como a AGU e o TCU. “Ficaram os perseguidos políticos que deveriam ser honrados com anistia e quem jamais sofreu nenhuma perseguição política, muitos aprovados em concursos públicos e que foram colocados na mesma situação”, disse. “Isso tudo pode e deve ser enfrentado em ação ordinária”, complementou.

O ministro Gurgel de Faria, por outro lado, deu razão ao entendimento do relator. “Não se pode olvidar que a pessoa recebeu durante 20 anos essa anistia e agora simplesmente se diz que não tem prova. Se for assim, esse processo administrativo é de faz de conta. A única forma de demonstrar que foi perseguida é através de instrução probatória”, apontou.

Como houve pedido de vista do ministro Og Fernandes, o primeiro a votar depois do relator, nenhum deles oficialmente fixou posição.

Fonte – Revista Consultor Jurídico