Documentário sobre grupo de resistência à ditadura chega ao streaming

Publicado originalmente em 30/05/2021 

‘Libelu – Abaixo a ditadura’, sobre vertente trotskista do movimento estudantil, venceu o festival É Tudo Verdade no ano passado

Vencedor da 25ª edição do festival É Tudo Verdade, realizada entre setembro e outubro de 2020, o documentário “Libelu – Abaixo a ditadura” chegou aos principais serviços de TV sob demanda na última quinta-feira (27/5).

Dirigido por Diógenes Muniz, de 34 anos, o filme conta a trajetória do grupo Liberdade e Luta por meio de imagens de arquivo e depoimentos de quem vivenciou o período, como o jornalista Reinaldo Azevedo e o ex-ministro Antonio Palocci.
A Libelu, como ficou popularmente conhecida, surgiu em 1976, na Universidade de São Paulo (USP). De cunho trotskista, ela ajudou na revitalização do movimento estudantil que havia sido silenciado pelo AI-5, de 1968. Apesar de ter durado apenas seis anos, o grupo deixou uma marca profunda na militância contra o regime militar, como a retomada do lema “abaixo a ditadura”. Ainda assim, são poucos os registros que mostram essa atuação.
Na avaliação de Muniz, a resistência aos militares que data da segunda metade dos anos 1970 “não ganhou tanta atenção da narrativa histórica, sobretudo no audiovisual”. Para realizar o filme, ele e equipe fizeram uma ampla pesquisa sobre o grupo, antes de começar a filmar. Esse processo trouxe à tona uma série de imagens que ajudam a entender o que a Libelu representou na época, um “fenômeno”, como o diretor descreve.
O filme traz o depoimento de 20 ex-militantes da Liberdade e Luta que relembram suas atuações no movimento, entre eles o sociólogo Demétrio Magnoli, o escritor Cadão Volpato e o economista Eduardo Gianetti. Com exceção de Palocci, que na época das gravações estava em prisão domiciliar por corrupção e lavagem de dinheiro, todos eles gravaram a entrevista em uma sala na Faculdade de Arquitetura da USP.
Em um dos pontos altos do filme, o diretor confronta os entrevistados em relação a questões que não eram pautadas pela Libelu, como racismo e machismo estrutural. Isso,  ele acredita, deve-se a um “choque geracional entre a equipe de filmagem (relativamente jovem, nascida na democracia) e os entrevistados (mais velhos, que lutaram contra a ditadura)”.
Documentarista estreante, Diógenes Muniz considera a vitória no É Tudo Verdade algo “inesperado”. Seu próximo filme, o curta documental “Pivetta”, tem estreia prevista para o segundo semestre deste ano.

“Libelu – Abaixo a ditadura” chegou ao circuito comercial de salas na semana passada em cidades como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, onde os cinemas estão funcionando. Em virtude da pandemia, a estreia segue em modo virtual para atingir o público de outras localidades. Em 20 de julho, o documentário será exibido pelo Canal Brasil e, em agosto, pela GloboNews.

Na época em que venceu o É Tudo Verdade, o diretor concedeu a entrevista a seguir ao Estado de Minas.

Cumprindo prisão domiciliar, o ex-ministro Antonio Palocci gravou entrevista em seu apartamento

“Libelu – Abaixo a ditadura” é um documentário formado basicamente por dois elementos: entrevistas e materiais de arquivo. Em qual contexto político do Brasil essas duas etapas aconteceram? Esse contexto influenciou sua escolha por documentar esse tema?

Diferentemente do que se possa imaginar, não começamos a pesquisar ou a rodar esse filme por conta da eleição de Bolsonaro, que é um defensor da ditadura militar e adorador confesso de torturadores. Começamos a procurar informações mais consistentes sobre a Libelu um pouco antes de 2015. As entrevistas foram feitas entre 2018 e 2019. O início do projeto data de antes da deposição da Dilma e da prisão do Lula, portanto. Uma das minhas primeiras surpresas foi ter encontrado registros fílmicos (como o curta “O apito da panela de pressão”) e relatos escritos em primeira pessoa (como o da poeta Ana Cristina Cesar) a respeito da onda de passeatas estudantis de 1977, que desafia o regime militar quando o AI-5 ainda vigia. Pensava em Junho de 2013, um tsunami que atravessa minha geração de maneira bastante aguda, mas depois vi que são eventos diferentes – sobretudo no que vem a seguir.

Como surgiu a ideia de documentar esse movimento? E por que agora?
A resistência ao regime militar da segunda metade dos anos 1970, após a derrota da luta armada, não ganhou tanta atenção da narrativa histórica, sobretudo no audiovisual. Os eventos, quando muito, são apresentados de maneira desconectada. Por exemplo: é comum para pessoas da minha idade ouvirem falar da invasão da PUC, mas poucos sabem que essa é uma resposta violenta do regime a um avanço do Movimento Estudantil, um revide à reorganização política dos estudantes. Então havia essa vontade de se debruçar sobre uma personagem relevante desse período pouco explorado. A Liberdade e Luta, embora não fosse o grupo mais numeroso ou o que mais ganhava eleições, era o mais vocal e um dos mais radicais. Acabou virando um fenômeno (inclusive midiático) e gerando fascínio entre seus pares do Movimento Estudantil – a ponto de o termo “libelu” surgir na boca de uma personagem de telenovela da Band, em 1979, como aparece no filme.
O filme traz uma série de registros históricos bastante importantes para contextualizar o movimento e o período histórico em que ele nasceu. Como foi o processo de pesquisa para acessar esse material?
Dividi a pesquisa com a assistente de direção do filme, a jornalista Bianka Vieira. Fuçamos os arquivos públicos de São Paulo e Rio de Janeiro e o Centro de Documentação e Memória da Unesp. Também acessamos acervos do Arquivo Nacional, do jornal “O Trabalho” e de jornais e revistas que circulavam na época (“Folha”, “Estadão”, “Jornal da República”, “Jornal da Tarde”, “Veja”, “Istoé”, etc). Levantamos documentos da repressão que descreviam as movimentações dentro do Movimento Estudantil e especificamente da Libelu. As imagens da época são da TV Cultura, da Band, TV Globo e Cinemateca Brasileira. A peça videográfica mais importante do filme, uma entrevista de Mino Carta com dois dirigentes da Libelu na TV Tupi em 1979, veio da Cinemateca.
De certa forma, você confronta os entrevistados trazendo para eles algumas questões que, no passado, talvez não estivessem tão em voga quanto hoje. A falta de negros e de lideranças femininas na Libelu são exemplos disso. Por que você decidiu abordar isso no filme?

Acho que isso faz parte também do choque geracional entre a equipe de filmagem (relativamente jovem, nascida na democracia) e os entrevistados (mais velhos, que lutaram contra a ditadura). Debates que para nós estão postos de maneira mais corrente, naquela época não circulavam tanto – como é o caso do racismo e machismo estruturais. A USP sempre foi uma escola formadora de quadros de elite, com pouca diversidade racial. Isso só vai começar a ser enfrentado de frente a partir de medidas de reparação histórica, como as cotas, que são recentíssimas.

Qual é o contexto do áudio em que José Genulino se dá conta do racismo que sofreu a vida toda?
Eu e o José Genulino acabamos ficando próximos após a gravação na FAU-USP. Trocávamos e-mails sobre músicas que poderiam encaixar na trilha sonora do filme e, às vezes, ele me ligava com alguma lembrança dos anos 1970. Depois da filmagem, percebi que ele não tinha conseguido dizer tudo o que gostaria e pedi autorização para gravar nossos papos por telefone. O registro que aparece no filme é de uma ligação dele no Dia da Consciência Negra. Hoje ele está vivendo na Bahia e continuamos com as sessões telefônicas. Acho que a vida dele daria um filme à parte.
Um dos personagens do filme é o ex-ministro Antonio Palocci, condenado à prisão domiciliar por corrupção e lavagem de dinheiro. Como foi o processo para conseguir gravar esse depoimento? Por que a escolha de colocar uma projeção dele em uma das salas da FAU, onde ocorreram as demais entrevistas?
Palocci está sem dar entrevista já faz alguns anos, desde antes de ser preso. Demorei um bom tempo para conseguir oficializar o convite, para fazê-lo tomar conhecimento do projeto. Quando ele foi preso, continuei insistindo e mandei alguns arquivos e fotografias relacionados à sua militância trotskista por correio. Mas só consegui conversar diretamente com ele por telefone depois da soltura. No início, Palocci não queria me receber pessoalmente, mas acabou topando que gravássemos no seu apartamento em São Paulo enquanto cumpria prisão domiciliar. Como levamos todos entrevistados de volta ao campus da Cidade Universitária, no Butantã, pareceu lógico que fizéssemos isso também com ele – por isso o projetamos na FAU.
O filme é a sua estreia como documentarista. Enquanto estreante, como você avalia o produto final? Ele está de acordo com o que você idealizou quando pensou, pela primeira vez, em fazer um filme? Quais foram os principais desafios da produção? Você pretende se embrenhar nesse caminho de novo?
Ter chegado até o fim do processo de dirigir um longa-metragem e ter conseguido exibi-lo num festival como o É Tudo Verdade foi muito importante, até inesperado. Não só para mim. Muitas das pessoas da pequena equipe do “Libelu” estavam estreando comigo ali, também não são originalmente do cinema. Passamos muito tempo duvidando da potência do documentário, um filme de uma locação só, com muitas limitações de orçamento e um tema espinhoso protagonizado por gente mais acostumada a analisar do que a ser analisada. Tenho um outro filme pronto. Chama-se “Pivetta”. É um curta-metragem sobre uma prisão ocorrida na Bienal Internacional de São Paulo de 2008 (aquela exposição que ficou conhecida como “Bienal do Vazio”). Esse filme foi feito sem produtora e sem apoio nenhum, só na vontade de fazer mesmo.

Reinaldo Azevedo e os demais entrevistados do filme tiveram seus depoimentos gravados na sede da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

“LIBELU – ABAIXO A DITADURA”
• Direção: Diógenes Muniz
• 90 minutos
• 14 anos
• Disponível no NOW, Vivo Play, Oi Play, Google Play, iTunes, Apple TV e Youtube Filmes
Fonte – Estado de Minas