Organização sem fins lucrativos acusa a gigante petrolífera de estar envolvida em abusos de direitos humanos cometidos contra o povo Ogoni pelas forças de segurança nigerianas na década de 1990
A Amnistia Internacional está a exigir ao Reino Unido, à Nigéria e à Holanda que abram investigações criminais à gigante petrolífera Shell pelo que diz ter sido a sua cumplicidade em abusos de Direitos Humanos cometidos pelo Exército nigeriano na década de 1990.
Num relatório divulgado esta terça-feira, a organização não-governamental apresenta os resultados de uma análise aprofundada a milhares de documentos internos da empresa com sede em Haia e de declarações de testemunhas; em conjunto, aponta a Amnistia, os documentos demonstram que a petrolífera anglo-holandesa esteve envolvida numa brutal campanha para silenciar ativistas na região de Ogoniland há cerca de 20 anos.
Os investigadores da ONG acusam a Shell de ter sido “cúmplice de homicídios, violações e tortura” de manifestantes que, no início dos anos de 1990, organizaram protestos contra as operações da empresa e os consequentes derramamentos de petróleo na região.
O CASO
O relatório da Amnistia compila milhares de documentos que já eram do conhecimento público mas também outros que nunca tinham sido noticiados — entre eles declarações de testemunhas consultadas pelo “The Guardian” onde estas alegam que a Shell geria uma unidade de agentes da polícia à paisana, treinada pelos serviços de segurança da Nigéria, que foi criada para vigiar Ogoniland depois de a empresa ter abandonado oficialmente a região.
A Shell suspendeu as suas operações ali no início de 1993 por causa de “preocupações quanto à segurança” dos seus trabalhadores, mas os documentos, aponta a Amnistia, mostram que “depois disso tentou encontrar formas de reentrar na região e pôr fim aos protestos do Movimento pela Sobrevivência do Povo Ogoni”.
O grupo de ativistas foi fundado e liderado pelo escritor nigeriano Ken Saro-Wiwa para proteger as comunidades indígenas de Ogoniland e as suas terras de um potencial “desastre ecológico”. Em 1993, as pressões exercidas pelo grupo levaram a Shell a abandonar a região, mas apenas temporariamente — meses depois, novos protestos em massa tiveram lugar ali quando a petrolífera avançou com os planos para a construção de um novo oleoduto.
A 30 de abril desse ano, as tropas que protegiam a Shell abriram fogo contra os manifestantes e feriram 11 pessoas; dias depois, num incidente distinto, as mesmas forças de segurança mataram um homem da aldeia de Nonwa a tiro. Os eventos espoletaram uma brutal operação de repressão da polícia militar nigeriana, que ao longo da semanas seguintes matou cerca de mil pessoas e destruiu as casas de outras 30 mil.
“Há provas de que a Shell encorajou repetidamente o Exército da Nigéria a lidar com as manifestações comunitárias, mesmo quando sabia os horrores que se seguiriam — execuções extrajudiciais, violação, tortura e queima de aldeias”, diz Audrey Gaughran, diretora de assuntos globais da Amnistia.
“O papel-chave que a Shell desempenhou nos eventos devastadores em Ogoniland nos 1990 é indisputável e acreditamos agora que há provas suficientes para abrir uma investigação criminal. Juntar todas estas provas foi o primeiro passo. Agora vamos preparar um ficheiro criminal para apresentar às autoridades relevantes com vista a acusações formais.”
No relatório esta terça-feira divulgado, a Amnistia alega que a Shell forneceu “apoio logístico” ao Exército da Nigéria durante aquele período e que, em pelo menos uma instância, pagou a um comandante já conhecido por violações de Direitos Humanos.
Os documentos que a ONG reuniu revelam que, em março de 1994, a empresa pagou mais de 900 dólares a uma unidade especial do governo nigeriano criada para “restaurar a ordem” em Ogoniland — isto dez dias antes de o comandante dessa unidade ter ordenado o seu batalhão a abrir fogo sobre os manifestantes pacíficos frente à sede regional da Shell em Port Harcourt.
ACUSAÇÕES E REAÇÕES
Ao longo de vários anos, a Shell alegou sempre que a sua relação com as forças policiais e militares da Nigéria tinha “unicamente” como objetivo “proteger” os seus funcionários e propriedades; novos documentos obtidos no âmbito de um processo judicial contra a empresa alegadamente mostram que a unidade criada a pedido da petrolífera tinha ligações próximas às SSS, a agência de serviços secretos da Nigéria.
“O facto de a Shell estar a gerir uma unidade clandestina e duvidosa e a passar informações à secreta nigeriana é incrivelmente perturbador”, defende Mark Dummett, um dos membros da Amnistia envolvidos nesta investigação. “Isto aconteceu numa altura em que a Nigéria estava a reprimir manifestantes pacíficos e existia certamente o risco de as informações recolhidas pela unidade de espionagem secreta da Shell contribuírem para graves violações de direitos humanos. Estas revelações mostram o quão estreita e pérfida era a relação da petrolífera com o Estado nigeriano. A Shell tem de dar respostas a questões sérias.”
A campanha do governo nigeriano contra o povo Ogoni em que a Shell esteve alegadamente envolvida culminou com as condenações à morte de nove nigerianos da etnia, entre eles Saro-Wiwa, o líder dos protestos. Na altura, várias ONG denunciaram o julgamento injusto a que foram submetidos e que conduziu às suas execuções. Em junho deste ano, as viúvas de quatro desses homens abriram um processo contra a Shell na Holanda, acusando a petrolífera de cumplicidade nas suas mortes.
A Amnistia sublinha que qualquer indivíduo ou empresa pode ser responsabilizado e julgado por um dado crime caso se comprove que o encorajou, facilitou ou exacerbou. No seu relatório, “A Criminal Enterprise?”, a organização diz que é neste sentido que a Shell deve ser levada a tribunal pelo papel que desempenhou em Ogoniland.
Quando proferiu as suas últimas declarações diante do tribunal que o condenou à morte, Saro-Wiwa sublinhou que chegaria o dia em que seria a petrolífera a sentar-se no banco dos réus. Agora, a Amnistia diz que está “empenhada em fazer isto acontecer” — “É precisa justiça para Ken Saro-Wiwa e para milhares de outros cujas vidas foram arruinadas pela destruição que a Shell causou em Ogoniland.”
Contactado pelo “Guardian”, um porta-voz da Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd (SPDC) disse que as alegações não são novas e que a empresa continua a rejeitá-as categoricamente. “As execuções de Ken Saro-Wiwa e dos seus conterrâneos Ogonis em 1995 foram eventos trágicos assinados pelo governo militar que estava no poder à data. Estamos chocados e entristecidos com estas notícias.”
A isto, o porta-voz acrescentou: “Apoiar os direitos humanos em linha com o papel legítimo empresarial [da Shell] é fundamental e está de acordo com os valores-base de honestidade, integridade e respeito pelas pessoas que orientam a Shell. As alegações da Amnistia contra a SPDC são falsas. A SPDC não colaborou com as autoridades para suprimir protestos comunitários e de forma alguma encorajou ou defendeu qualquer ato de violência na Nigéria. Acreditamos que as provas vão demonstrar claramente que a Shell não é responsável por estes eventos trágicos.”
Fonte – Expresso.pt