Esétáculo fica em cartza no Teatro II do Sesc-Tijuca
‘Seguindo aqui pela Rua Barão de Mesquita, ando cinco minutos e paro em frente ao número 425. É um prédio grande, extenso, branco, de dois andares, bonito, bem cuidado. Há uma placa que identifica a sua função: 1º Batalhão de Polícia do Exército. Ali, foi sede do DOI-Codi, órgão criado para combater os inimigos internos que ameaçavam a segurança nacional. Quarenta e três anos se passaram e restaram pequenas cicatrizes no meu corpo. É essa história que compartilho com vocês”. A introdução do texto do espetáculo “Solitárias”, em cartaz no Teatro II do Sesc-Tijuca, ajuda a compreender a trama da peça. Com duração de cerca de 50 minutos, o monólogo interpretado pela atriz Carolina Caju foi criado a partir de relatos, colhidos pela Comissão da Verdade do Rio, de mulheres que foram presas e torturadas no estado durante o período da ditadura militar (1964-1985).
O 1º Batalhão de Polícia do Exército Marechal Zenóbio da Costa, onde funcionava o DOI-Codi, era uma uma espécie de quartel-general de boa parte dessas atrocidades. Nada mais simbólico do que a escolha do Sesc, a poucos metros do batalhão, como palco para a montagem da trama inédita, que tem uma encenação ainda mais emblemática no ano em que o Ato Institucional Número 5 (AI-5), que tornou a censura e a perseguição aos opositores do regime ainda mais duras, completa cinco décadas.
A ideia de criar a montagem, no entanto, surgiu ainda em 2015, quando a atriz Carolina Caju participou de um evento do metiê teatral em Campinas, interior de São Paulo, onde encontrou artistas de países da América Latina que já tinham participado de produções e debates sobre assuntos relacionados a ditaduras militares e a violência contra a mulher nos anos 1960/1970, como Chile e Argentina.
— Voltei para o Rio com aquilo em mente. Pensando sobre como também se encaixava perfeitamente no caso do Brasil. No começo de 2016, encontramos o relatório da Comissão da Verdade do Rio, que tinha sido recém-publicado em dezembro de 2015, e então começamos a pensar de fato em produzir o espetáculo. E isso casou perfeitamente com a questão da luta feminina na política e com a forma com que a História apaga as vozes, principalmente das mulheres. Não somos uma companhia teatral formada, mas já conheço o diretor e a autora há um tempo e trabalhamos juntos algumas vezes — afirma Carol.
Entre 2013 e 2015, a Comissão da Verdade do Rio dedicou-se ao esclarecimento de casos de prisões ilegais, torturas e mortes ocorridas no Rio a partir do golpe de 1964. Parte desse relatório, com cerca de 400 páginas, é reservada especialmente aos depoimentos de mulheres presas e torturadas que revelaram as atrocidades sofridas após décadas de silêncio. Esse é exatamente o ponto sobre o qual a peça se debruça.
— Nunca foi nosso objetivo adaptar todo o relatório. São muitos recortes, assuntos e direcionamentos. Buscamos, aliás, referências em filmes, documentários e em textos de mulheres artistas da época. A Carol também me dava dicas sobre assuntos do relatório que mexiam mais com ela e eu fazia propostas — diz a autora da peça, Clarisse Zarvos.
O regime militar no Brasil foi um período que teve como marca, além da violação extrema dos direitos humanos, o ocultamento de muitos dos seus crimes. O relatório da comissão teve pouca visibilidade, apesar de constituir-se um material fundamental para a análise daquele período da História brasileira e de suas reverberações na atualidade. A peça revisita depoimentos inéditos, através de uma perspectiva artística contemporânea, promovendo um diálogo entre ontem e hoje.
— Queremos apresentar poeticamente todo esse cenário e fazer conexões com fatos do cotidiano. Tal como a violência contra a mulher. Trazemos, por exemplo, uma fala do Darcy Ribeiro que é muito semelhante ao que está acontecendo atualmente no cenário político brasileiro, na qual ele diz: “Um regime militar que entra no governo com o discurso de acabar com a corrupção e salvar a população e fica no poder durante 21 anos está, na verdade, governando em nome dos militares e propondo uma agenda de diminuição de direitos, que só seria possível com um estado totalitário e abusivo”. Estamos vivendo atualmente algo perigosamente parecido — afirma Douglas Resende, que assina a direção do espetáculo.
Resende acrescenta que a peça ajuda a desmistificar dados como a atuação exclusiva de militares nos processos de tortura, e que as sessões não eram realizadas somente às escondidas, em “porões”.
— É dito pelas torturadas que muitos civis, apoiadores dos militares, participavam dos processos. E que nunca existiu um “porão da ditadura”. As pessoas eram presas e torturadas à luz do dia nos quartéis. Era sabido por muitos e uma prática de Estado. Um depoimento da historiadora Dulce Pandolfi diz isso: ela foi presa no DOI-Codi e a sala de tortura ficava no primeiro andar, na frente do pátio, mesmo pátio onde os soldados juravam a bandeira todos os dias. E elas eram obrigadas a varrer o chão nuas enquanto homens ficavam ao lado, zombando, entre outros abusos e atrocidades — conta.
A montagem também procura desfazer ideias propagadas na ocasião que perduram até os dias de hoje.
— É aquela velha história de um comunismo bicho-papão que quer tomar conta do país e instaurar uma ditadura do proletariado. Qualquer discurso que se assemelhe ou alie à igualdade de direitos ou distribuição de renda nos dias atuais, as pessoas já associam a essa história e mandam você “ir para Cuba”. Sem dúvida, esse foi um dos principais argumentos para a instauração do regime militar na época — explica Resende. — As mulheres que tinham esse discurso eram, sim, de partidos com viés esquerdista, mas estavam lutando por reformas e maior participação da população nas decisões políticas. Então, decidimos falar, com humor irônico e sarcasmo, sobre essa lenda do “comunista bicho-papão”. Nosso objetivo é debater e tentar ajudar a formar um país melhor.
Fonte – O Globo