Correio Braziliense - Victor Mendonça Neiva - 23/07/2019
A adoção de uma justiça de transição – conceito consagrado pelo direito internacional para nomear o conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas para reparação de violações em massa de direitos humanos – é oportunidade clássica e privilegiada que as nações têm para passar a limpo o passado e mirar o futuro. Sua simples existência já significa o reconhecimento de que algo excepcional aconteceu e é recomendável fazer uma análise profunda para elaborar um diagnóstico preciso das razões de atrocidades ocorridas, bem como para evitar que voltem a acontecer. É por meio desse processo que se obtêm a verdade e a paz indispensáveis para seguir adiante.
Infelizmente, o Brasil se destaca como exemplo negativo em termos de justiça de transição. O simples fato de terem sido necessários quatro atos normativos para a sua regulamentação, no período de quase um quarto de século (Lei 6.683/79, EC 26/85, art. 8º do ADCT/88 e Lei 10.559/2002), já é indicativo claro de que sua implementação no país apresenta dificuldade além do normal.
Esse fundamental debate, que ao longo dos últimos anos teve como principal palco a Comissão da Anistia, foi marcado por lamentável egoísmo geracional. Além de não se ter investigado nem punido os atos atentatórios a direitos humanos perpetrados durante a ditadura militar, de modo a oxigenar as instituições, foi adotado um sistema de indenizações à prestação, jogando o custo para o futuro. Assim, às gerações vindouras restaram problemáticas instituições e a conta para pagar.
Reconheça-se, entretanto, que, se a nossa justiça de transição não foi a ideal, foi a possível. Talvez por isso, mesmo sob críticas severas, o Supremo Tribunal Federal (STF) se recusou a permitir a apuração dos crimes, gerando condenação do Brasil na OEA. Restou, então, nos resignarmos à velha lição de que “é melhor um acordo ruim que uma boa demanda”.
O problema é que mesmo esse “acordo ruim” tem sido sistematicamente violado. Se, por um lado, a parte do “esquecimento sem punição” foi cumprida, o revolvimento dos atos da ditadura não cessa no que tange à reparação das vítimas. Com efeito, já se passaram mais de três décadas e o problema ainda não foi solucionado. Os governos pós-ditadura se caracterizaram por fugir da fatura contratada, geralmente utilizando estratagemas burocráticos ou contumácia deliberada.
Se já era grave o que vinha acontecendo, é espantoso o que se tem visto atualmente, sob o atual governo. Além de retirar do reconhecimento da indenização o valor devido, impondo às vítimas uma segunda etapa para conquistar o que em tese já ganharam, se está, na verdade, sufocando o que resta de esperança a pessoas de famílias comprovadamente violentadas pelo regime militar. E, o que é pior, às custas de ainda mais recursos do país.
Sob a afirmação falsa de que “em outros momentos bastava chorar para se estar anistiado”, se tem conduzido um efetivo massacre de direitos em nome de um suposto rigor técnico-fiscal, ao arrepio inclusive de jurisprudência pacificada nas cortes superiores.
Seja por negar atos de exceção reiteradamente reconhecidos na Justiça, escancaradamente não se cumprir diligências como estabelecido em lei, ignorar provas evidentes como atas de sessões legislativas com cassações políticas de mandatos, ou pela formação de blocos sem nenhuma identidade de problema jurídico que a justifique, o que está de fato ocorrendo é o descumprimento do acordo que fundou a nossa recente e já maltrapilha democracia.
Engana-se quem pensa que a subversão dos fatos traz algum benefício para o país. A tentativa de fazer colar uma imagem de moralização na verdade escamoteia a formação de um “esqueleto contábil”, através da judicialização em massa de demandas, que tem acarretado condenações, nas cortes superiores, com valores bem superiores aos que, honestamente, se teria que pagar, caso a lei fosse corretamente cumprida. Não nos esqueçamos de que os juros cobrados durante a tramitação de demandas judiciais são atualmente bem maiores do que os utilizados para o financiamento da dívida pública. Por isso, quanto mais o tempo passa, mais cresce a fatura, que terá que ser paga até por gerações que não têm a memória da ditadura.
O fato é que o Brasil está vivenciando, também na sensível área da justiça de transição, um populismo renovado e intransigente, que, sem respeito à Constituição e mesmo aos mais comezinhos princípios de moralidade, ganha apelo apenas pela ofensa – a direitos, a pessoas ou à verdade. E, lamentavelmente, continuamos aumentando a conta de problemas do passado a serem resolvidos, que continuam a assombrar o país como cadáveres insepultos.
FONTE – CORREIO BRASILIENSE