Documentos oficiais comprovaram crimes cometidos pela ditadura

Após questionar morte do pai do presidente da OAB, Bolsonaro chama de ‘balela’ registros formais do Estado sobre repressão

Um dia depois de negar que o desaparecimento do ex-militante Fernando Santa Cruz, em 1974, tenha sido responsabilidade do regime militar , ao contrário do que confirmam documentos oficiais , o presidente Jair Bolsonaro voltou a minimizar nesta terça-feira registros formais do Estado sobre a repressão durante a ditadura. O presidente contestou o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que apurou entre 2012 e 2014 violações dos direitos humanos no regime.

— A questão de 1964… não existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela. Você quer documento para isso (desaparecimento de Fernando Santa Cruz), meu Deus do céu. Documento é quando você casa, você se divorcia. Eles têm documentos dizendo o contrário? — perguntou Bolsonaro.

Nesta terça-feira, O GLOBO e a Época revelaram um registro secreto da Aeronáutica datado de 1978 sobre a prisão de Fernando Santa Cruz em 1974 e um atestado de óbito, da semana passada, da Comissão de Mortos e Desaparecidos, do Ministério dos Direitos Humanos, afirmando que Santa Cruz foi morto quando estava sob domínio do Estado.

Arquivos oficiais

O caso de Santa Cruz, porém, não foi o único de crimes contra os direitos humanos durante a ditadura comprovados com documentos oficiais nas últimas décadas. Diversos outros arquivos oficiais revelaram a situação das vítimas fatais da ditadura. Um dos mais extensos é o do Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência que assessorava diretamente a Presidência da República durante a ditadura, e disponível para consulta desde 2012.

Nesse arquivo está, por exemplo, a foto que comprova que o engenheiro Raul Amaro Nin Ferreira, preso por agentes do Dops, no Rio, em 1º de agosto de 1971, estava com sua integridade física e saúde preservadas quando entrou na carceragem. Depois de preso, foi levado no dia seguinte para o DOI-Codi, no quartel da Polícia do Exército, na Tijuca. Torturado durante dias, morreu no Hospital Central do Exército. Os militares devolveram o corpo à família 11 dias depois.

— Na imagem, ele está visivelmente surpreso, assustado com a prisão arbitrária e, com certeza, não fazia ideia do que estava lhe esperando: câmaras de tortura organizadas no quartel da Polícia do Exército e o leito de morte no Hospital Central do Exército (HCE). Em muitos outros casos, nem se viu o corpo — lamentou Pedro Ferreira, irmão de Raul, ao receber a imagem, inédita na ocasião.

Vários outros casos, nas últimas três décadas, tiveram sua história revelada e comprovada a partir das iniciativas do governo federal e leis aprovadas no Congresso para investigar abusos cometidos pelo regime militar.

O GLOBO também localizou, em 2012, o primeiro documento em que a ditadura identificava como “morto” o secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), Mário Alves de Souza Vieira. Apesar de quatro testemunhas terem presenciado a tortura de Vieira na Polícia do Exército, mesmo local que viria a ser o DOI-Codi do Rio, o Exército nunca assumiu a prisão dele. Ele desapareceu em 16 de janeiro de 1970. O documento que integra o acervo do SNI é de 1971, um ano após o desaparecimento, e constitui uma listagem com nomes de militantes, seus codinomes e suas organizações. Na página 143 estão as informações sobre o militante do PCBR. Na primeira coluna, o codinome pelo qual era conhecido: “Vila”, na última, seu nome completo: Mário Alves de Souza Vieira; no meio, o campo “situação atual” indica: morto.

— Esse documento é mais um dado que mostra que eles não tinham nenhum pudor de fazer uma lista com os nomes dos mortos. Se até hoje eles negam a prisão, como é que o dão como morto? — desabafou Lúcia Alves, filha de Mário, quando o documento foi localizado.

No acervo do SNI também está o primeiro documento da ditadura em que o deputado federal cassado, Rubens Paiva foi contabilizado como “falecido”. No “Pedido de Busca 10/15/AC/77”, datado em 20 de janeiro de 1977, o SNI fez uma atualização da situação de diversas pessoas que tinham sido alvo de cassação em 1964. Nesse documento, localizado pela Agência Lupa, o nome de Rubens Paiva surge como “falecido”.

Preso em janeiro de 1971 e levado ao DOI-Codi do Rio, o parlamentar morreu sob tortura.  Os militares, porém, forjaram uma versão em que ele teria fugido durante um reconhecimento no Alto da Boa Vista. Essa história só foi desmentida por um dos militares responsáveis por sua prisão recentemente.

FONTE – O GLOBO