Publicado originalmente em 31 de março de 2020, 15h57
“Quando, após tantos anos de lutas e sacrifícios, promulgamos o estatuto do homem, da liberdade e da democracia, bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura”. Com essas palavras, o então presidente da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional que elaborou a Constituição, Ulysses Guimarães, assinalou quais são os pilares da nova ordem, em histórico discurso durante a sessão que promulgou o atual texto maior, em outubro de 1988.
Pouco mais de 30 anos depois evento, o ministro da defesa, Fernando Azevedo e Silva, divulgou uma nota por meio da qual chama o golpe de 1964 de “marco para democracia”.
A tentativa de reescrever a história também foi endossada pelo vice-presidente da República, Hamilton Mourão. Um discurso dissonante do ao do dr. Ullysses, que deixara claro que o povo brasileiro não apenas tinha ódio da ditadura: “Ódio e nojo!”.
Operadores do Direito, representantes de organizações civis e parlamentares repudiaram a manifestação do ministro e do vice-presidente.
Um dos primeiros a se manifestar foi o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz. “A ditadura é o período mais tenebroso da história brasileira, acrescido do fiasco econômico sobre o qual confetes propagandistas jorraram obscurantismo. E tudo isso sob o preço impagável da liberdade. Quem celebra o golpe atesta sua ausência de inteligência, ou de humanidade”, escreveu o representante da advocacia brasileira.
Santa Cruz é filho único de Fernando Santa Cruz, desaparecido político aos 26 anos de idade no Carnaval de 1974. Em entrevista recente à ConJur, o advogado lembrou que “o Brasil é terra fértil para rupturas políticas, com embasamento jurídico”.
Quem também se manifestou foi o jurista e professor Lenio Streck. Ele lembra que sofreu os efeitos danosos da ditadura militar ainda em tenra idade. “Como é possível defender a ditadura militar implementada em 1964 e endurecida mais ainda em 1968? Eu vi meu pai ser preso em plena lavoura, enquanto trilhava arroz. E meu pai não era subversivo. Foi acusado de ser do grupo dos onze brizolista. Eu vi como essa prisão e seus efeitos colaterais acabaram com a família, com detalhes impublicáveis. Nunca mais se reergueu (…). Levamos mais de duas décadas para reinstalar a democracia. O AI-5 foi a coisa mais cruel em termos de direito já feita. O artigo 11 dizia que ficam insuscetíveis de apreciação pelo Judiciário os atos decorrentes deste ato. E hoje falam que foi bom?”, afirma.
O advogado Alberto Zacharias Toron faz questão de exaltar que a “a transposição da ditadura militar é um feito a ser comemorado e o golpe de 64 é um acontecimento político que não pode ser esquecido, para não que não se repita!”.
Por meio de seu perfil no Twitter, o juiz Guilherme Madeira Dezem lembrou dos crimes da ditadura. “Gostaria de lembrar a todos os que negam a ocorrência de torturas e afins que há várias sentenças transitadas em julgado reconhecendo a tortura. A minha foi uma delas”, escreveu junto com o link da decisão repercutido pela própria ConJur.
A Anistia Internacional lembrou que “hoje, dia 31 de março, completam-se 56 anos desde o Golpe Militar no Brasil, episódio que deu início a período sombrio da história do Brasil, marcado por pessoas assassinadas, desaparecidas e torturadas sob a custódia do Estado”.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, não se pronunciou sobre o assunto. No mesmo 5 de outubro de 1988, Ullysses Guimarães vaticinou no mesmo discurso que a “sociedade sempre acaba vencendo, mesmo ante a inércia ou o antagonismo do Estado”.
Fonte – Revista Consultor Jurídico