Colaboradores da ditadura militar, legistas forjaram laudos para que responsáveis por torturas escapassem ilesos, sem prestar contas de seus crimes. Mas a História não esquece
No último 7 de abril, um sábado de Sol, cerca de cem manifestantes se reuniram em frente a uma casa localizada no número 81 da rua Zapara, no coração da Vila Madalena, em São Paulo. Diante de fotógrafos, cinegrafistas e curiosos, o grupo começou a pichar a casa, a calçada e os muros da residência com palavras como “assassino”. O evento, batizado como “dia do esculacho popular”, teve o objetivo de constranger o ilustre morador daquele endereço: o médico Harry Shibata. A data também não foi por acaso. No dia 7 de abril se celebra o “dia do legista”.Durante os anos da ditadura, Shibata foi um dos mais requisitados médicos legistas do regime. Sua missão era dar aparência de normalidade à mortes causadas sob tortura dos agentes do regime. E, segundo consta, ele era um expert nisso. “O Shibata era muito bom em anatomia e descrição”, informa o também médico legista Nelson Massini, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Considerado o legista número 1 das vítimas da ditadura, Massini foi o perito responsável por desmascarar alguns dos laudos mais escandalosos produzidos pelos médicos da ditadura. Ele conta que Shibata produzia laudos completos e quase perfeitos, mas com conclusões erradas. Entre suas “obras-primas” estão os laudos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, dois dos personagens mais emblemáticos da violência operada pelos militares. Mas eles não foram os únicos.
Depois do ato, os manifestantes fizeram uma passeata pelas ruas dos bairros e colaram por toda parte cartazes com a foto, o endereço e a descrição dos casos de assassinato em que Shibata limpou a barra do regime. Casos como o de Sônia Maria de Moares. O morador da casa “esculachada” afirmou com riqueza de detalhes que ela morreu em um tiroteio. Mas, segundo o cartaz, “ela foi torturada por horas, estuprada com um cassetete e teve os seios arrancados”. No dia seguinte, boa parte dos cartazes foram arrancados dos postes. E logo a casa da rua Zapara estava completamente pintada e sem resquícios da manifestação. Fórum tentou diversas vezes entrar em contato o médico tocando a campainha ou deixando bilhetes, mas não obteve sucesso. Recentemente, outro jornalista conseguiu cruzar o portão de madeira da mansão do legista: Mario Magalhães. A longa entrevista é guardada a sete chaves e só será revelada depois do lançamento do livro, que promete ser a mais completa biografia do guerrilheiro Carlos Marighella. Outro jornalista conta que ouviu rumores de que Shibata mantêm duas casas. O fato é que ele vive confortavelmente e, aparentemente, sem remoer remorsos.
Diploma
Em uma das tentativas frustradas de falar com Shibata, reparo que a edição de abril da revista da Associação Paulistana dos Médicos (APM) repousa em sua caixa de correio. Até o fechamento da matéria, o Conselho Regional de Medicina (CRM) não confirmou a suspeita de que o legista, que teve o diploma cassado em 1980, conseguiu recuperar seu diploma na Justiça. Foi Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, quem tirou a dúvida. “O Shibata e o Isaac Abramovitch, que era da equipe dele, conseguiram mandados de segurança. Nunca conseguimos nada contra eles.” Mas esses dois exemplos são, segundo Cecília, exceções. “Eles foram os dois únicos que escaparam. Nós abrimos 66 processos contra médicos da ditadura no CRM-SP e 44, no CRM-RJ. O Brasil é o único país que processou profissionalmente os médicos que participaram de tortura”.
A dirigente do Tortura Nunca Mais conta, ainda, que havia em todas as capitais brasileiras grupos de médicos que operavam como parte da engrenagem na linha de produção de crimes praticados pelos militares. As teses mais comuns usadas para maquiar os laudos eram, pela ordem, de mortes por tiroteio, atropelamento e suicídio. “Na necrópsia, há uma série de perguntas, sendo que uma delas é assim: A morte foi causada por meio insidioso ou cruel? Eles respondiam que não. Os mais temerosos em perder o diploma preferiam dizer que não havia como responder”, explica.
A expectativa dos parentes dos militantes assassinados é que a Comissão da Verdade, que até o fechamento desta edição ainda não havia sido formada pela presidenta Dilma Rousseff, recoloque o caso Shibata em discussão e possibilite uma tentativa de cassar seu diploma. Algo que, hoje, teria efeito muito mais simbólico do que prático. “Estamos resgatando documentos para pressionar o governo a implantar logo a Comissão da Verdade. Vamos cobrar a convocação, a investigação e a punição de Harry Shibata”, revela a deputada Luiza Erundina (PSB-SP), presidente da Comissão de Memória, Verdade e Justiça da Câmara dos Deputados. Em 1988, quando era prefeita de São Paulo, ela acompanhou de perto uma CPI da Câmara Municipal, que representou a primeira tentativa de jogar luz sobre os crimes da ditadura. “Foi quando fizemos a abertura das valas comuns do cemitério de Perus. Foram encontrados cinco corpos em uma só vala.
A, hoje, deputada socialista só lamenta, assim como o Tortura Nunca Mais, que a presidenta Dilma Rousseff ainda não tenha criado uma comissão com poder para punir diretamente os culpados. “Eu tenho um projeto de lei que propõe um novo conceito de anistia, isentando do benefício os que se envolveram em crimes de tortura e estupro. Em todos os países do mundo que têm comissão da verdade é assim. Por isso a OEA [Organização dos Estados Americanos] questiona a interpretação do STF [Supremo Tribunal Federal] sobre a Lei da Anistia”, pondera. “Somos extremamente críticos à comissão. O Shibata devia ser julgado, condenado e preso. Ele e os outros legistas eram o fim da linha de produção no sistema de terrorismo de Estado. Aquilo era uma máquina muito bem azeitada”, afirma Cecília Coimbra, do Grupo Tortura Nunca Mais.
De olhos bem fechados
O caso de Harry Shibata é apenas uma ilustração. Além dele, muitos outros profissionais que deveriam salvar vidas foram cúmplices e/ou auxiliares de autópsias fraudadas. Mas acabaram conseguindo submergir do radar da história. Um deles é o médico Arnaldo Siqueira, que chefiava o Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo nos anos de chumbo. Entre 1979 e 1981, o médico legista Nelson Massini era professor de Medicina Legal da Unicamp quando conheceu e trabalhou ao lado de Siqueira, que era chefe do departamento. “Eu fui para cima dele e questionei os laudos que o Shibata tinha feito, do Herzog e outros. Ele chorava e dizia que tinha filho para criar. O Siqueira pecou por omissão. Se eu fosse diretor do IML e visse algo de irregular, renunciaria ao cargo. Mas ele preferiu ficar calado e continuar recebendo um salário que, hoje, seria de uns R$5 mil.”
Em um desabafo, Siqueira revelou certa vez ao colega da Unicamp que ficou assustado quando viu o corpo do operário Manuel Fiel Filho. “Mas ele preferiu virar as costas e ir embora. Preferiu não tomar conhecimento.” Antes de morrer, Siqueira viu seu nome ser retirado de uma turma de paraninfos que descobriu seu passado. “Seu diploma nunca foi cassado”, diz Massini. Outro caso chocante é o do psiquiatra Amílcar Lobo. “No Doi-Codi, ele era o responsável por dar o laudo que dizia se era possível espancar mais ou não. Ele acompanhava o antes e o depois. Amílcar teve o diploma cassado em 1988, mas depois de cinco anos reverteu na Justiça, invocando a Lei da Anistia”, conta Massini.
O perito conta que os militares dominavam também o setor funerário e técnico além dos legistas. “Não ficava nenhum rastro.” Ele e Shibata se conheceram em 1985 na Polícia Federal, quando Massini trabalhava no caso Chico Mendes. “O delegado Romeu Tuma o levou para ocupar um cargo na Polícia Federal. O Shibata ainda era muito visado.” Outro que conseguiu reverter sua cassação na Justiça foi o médico militar Ricardo Fayad, acusado de participar de sessões de tortura. Ele chegou à patente de general.
Os herdeiros da técnica
Assim como ocorreu com as forças policiais do País, cuja herança dos anos de chumbo e a não punição dos responsáveis perpetuou seus métodos violentos, os médicos da ditadura fizeram escola e deixaram um legado técnico para outras gerações. Em 6 de março de 1990, quando Fernando Collor se apresentava como o presidente da redemocratização, o cadete do Exército Márcio Lapoente morreu durante um treinamento militar na Academia das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro. Para evitar que o opinião pública descobrisse que o motivo da morte tinha sido as torturas que faziam parte do treinamento, os militares convocaram o médico legista Rubens Pedro Macuco Janine.
“Eu e meu marido fomos chamados ao hospital do Exército porque, segundo os militares, o Márcio estava com uma febrezinha. Chegando lá, vimos uma ambulância com a porta aberta. Estavam todos sem jeito. Depois de um tempo, sem mais nem menos, chega um médico e pergunta: ‘Ele era filho único?’”, conta a professora Carmem Lapoente à Fórum. A mãe do cadete, que é militante do Grupo Tortura Nunca Mais, revela que Márcio apanhou muito no treinamento, vomitou diversas vezes e desmaiou. “Apesar do estado dele, foi obrigado a pagar um castigo que era subir e descer uma ladeira. Quem tentasse ajudá-lo era punido.”
O responsável pelo “exercício” que matou Lapoente foi o oficial do exército Antônio Carlos de Pessoa. “Ele é filho de um general que fundou a Academia de Agulhas Negras. Está na ativa até hoje e já ganhou medalhas de direitos humanos por fazer campanhas de vacinação”, conta a mãe do cadete. O laudo do médico legista afirmou que a morte, causada por falência múltipla dos órgãos, foi natural e causada por excesso de calor. “Mas no dia em que ele morreu estava nublado e com clima fresco. O médico Macuco Janine fez o exame na calada da noite.” Macuco também foi o responsável pela necrópsia de Raul Amaro Nin Ferreira, morto sob tortura em agosto de 1971. Ele teve seu diploma cassado pelo CRM-RJ em setembro de 2000. “Ganhamos uma indenização da Justiça, mas até hoje não recebi nada. Ganhamos, mas não levamos. Fizemos um processo contra a União que ficou sete anos na mesa do juiz e não deu em nada. O parecer foi contrário porque o juiz considerou que o Márcio estava em estado terminal.” F
Fleury: a versão final de uma história mal contada
Em depoimento publicado no livro Memórias de uma guerra suja, um ex-delegado do Dops (Departamento de Operações Políticas e Sociais) chamado Cláudio Guerra afirma que o delegado Sérgio Paranhos Fleury, o maior torturador do regime militar, foi assassinado por um grupo de extermínio formado por militares rebelados contra o processo de abertura política. Ele conta ter participado do encontro em que foi decidido que a morte de Fleury deveria parecer um acidente. A execução teria ficado por conta de um grupo de militares do Cenimar, o Centro de Informações da Marinha.
Diante da informação, que foi antecipada pelo portal IG, a procuradora da República Eugênia Fávaro defendeu que fosse reaberto o inquérito sobre a morte do delegado. Guerra, que está sob proteção policial, será ouvido na Comissão da Verdade. No livro, ele conta ter executado pessoalmente militantes de esquerda como Nestor Veras, do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB), após uma sessão de tortura da qual afirma não ter participado.
Justiça tardia
A Justiça de São Paulo tomou uma decisão inédita no último dia 17 de abril, e concedeu a retificação da certidão de óbito de João Batista Drumond, militante do PCdoB morto nos porões do Centro de Operações de Defesa Interna, o famigerado DOI-Codi. O laudo da morte diz que ele morreu de atropelamento na esquina da Rua Nove de Julho com a Rua Paim, em 1976. Na verdade, ele morreu em uma operação militar que ficou conhecida como “Chacina da Lapa”, quando a polícia militar cercou uma casa do bairro e praticamente exterminou toda a cúpula do partido, matando dois de seus líderes: Pedro Pomar e Angelo Arroyo.
O juiz da 2° Vara de Registros Públicos, Guilherme Madeira Dezem, alegou que a verdeira causa do óbito foi amplamente comprovada. No documentário “Perdão, Mt Fiel – o operário que derrubou a ditadura militar no Brasil”, o ex- agente do DOI-Codi, Marival Chaves, reconheceu que Vladimir Herzog e Fiel Filho foram assassinados pela ditadura. As duas mortes foram consideradas pelo regime como “acidentes de trabalho”.
Fonte – Revista Fórum