A discreta ação em defesa dos perseguidos pelas ditaduras

Uma das atuações de maior destaque da trajetória de dom Eugenio Sales foi quando, de maneira silenciosa, abrigou no Rio mais de quatro mil pessoas perseguidas pelos regimes militares do Cone Sul, entre 1976 e 1982. A maioria vinha da Argentina, mas havia também chilenos, uruguaios e paraguaios. Essa história veio à tona numa série de reportagens do GLOBO, assinadas pelo jornalista José Casado, em março de 2008.

Discretamente, o cardeal cultivou relações com os militares no poder no Brasil e ajudou a salvar vidas. O capítulo inicial dessa história se desenrolou num fim de tarde do outono de 1976, quando um jovem bateu na porta do Palácio São Joaquim, escritório e residência de dom Eugenio, na Glória. Sem documentos, dizia-se refugiado do regime militar instaurado seis semanas antes na Argentina. Dom Eugenio contou ter vivido um conflito.

“Foi um drama. Com o crucifixo na mão, eu pensava: “Como cidadão brasileiro, não posso receber montonero, tupamaro, aqueles refugiados que vinham (…) Em seguida, repensava: “Agora eu, como pastor, tenho o dever de receber”, relembrou ele em 2008.

O arcebispo pegou o telefone, um instrumento de trabalho fundamental à sua ação política nos bastidores, e ligou para o general Sylvio Frota, então ministro do Exército.

“Chamei o Frota no telefone vermelho (…) e falei: “Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final”, recordou.

Esse gesto acabou se transformando numa grande operação. Para dar conta de tantos pedidos de abrigo de refugiados políticos, dom Eugenio autorizou o aluguel de quartos e depois apartamentos. Foram 80 imóveis alugados em 14 bairros da cidade, como Centro, Lapa, Flamengo, Copacabana e Botafogo. Dom Eugenio mandou abrir os cofres da Mitra e liberou dinheiro também para gastos pessoais, assistência médica e auxílio jurídico. Em pouco tempo, o número de foragidos das ditaduras do Cone Sul chegando ao Rio chegou a 15 por semana. Na época, o arcebispo só exigiu que se mantivesse sigilo absoluto sobre a ação.

“Se eu anunciasse o que estava fazendo, não tinha chance. Muitos não concordavam, mas eu preferia dialogar e salvar”, disse. “Eu não tinha, nem nunca tive interesse em divulgar nada disso. Queria que as coisas funcionassem, e o caminho naquele momento era esse, o caminho de não pisar no pé (do governo”.

Ajuda também a presos brasileiros

A ajuda aos perseguidos políticos, no entanto, não se restringiu aos nossos vizinhos. Dom Eugenio costumava visitar os presos da ditadura brasileira no Natal e na Páscoa. Sebastião Paixão, ex-dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB), lembrou quando foi mandado para o presídio da Frei Caneca após ser torturado por 83 dias: “Um dia, dom Eugenio foi lá e pedi que arranjasse nossa transferência para Bangu, onde as famílias poderiam nos visitar. Dois dias depois, nos mudamos. Na prisão, eu fiz uma pirogravura do Cristo Redentor para ele, em agradecimento.”

Em outra ocasião, dom Eugenio deixou embaraçado o general Abdon Sena, que lhe pediu uma missa pelo aniversário do AI-5. “Vocês que estão satisfeitos com o AI-5 podem agradecer a Deus, mas não por meu intermédio”, respondeu.

 

Fonte – Gazeta do Povo

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