Em sua coluna na CH 293, Renato Lessa trata da implantação da Comissão da Verdade no Brasil e ressalta que a investigação de torturas e assassinatos praticados no governo militar pode revelar dados históricos cruciais para o entendimento do que somos como nação.
Fotos de mortos e desaparecidos durante o regime militar exibidas no Ato Nacional pela Verdade e Justiça, realizado em maio para apoiar a Comissão da Verdade e a denúncia de torturadores da ditadura. (foto: Circuito Fora do Eixo/ Flickr – CC BY-SA 2.0)
Agregados demográficos não são sinônimos de nações. Claro está que não há nação real – não falo das imaginárias – que não contenha base demográfica. População, coortes geracionais, dispersão/concentração pelo território, entre outras, são marcas obrigatórias a ser consideradas quando perguntamos, diante de alguma experiência nacional, “que nação é esta?”
No entanto, se o suporte demográfico é indispensável, está longe de ser suficiente para marcar distinções e particularidades nacionais. O gosto norte-americano pelo beisebol, tanto quanto o brasileiro pelo futebol, dificilmente poderá ser explicado por variáveis demográficas, assim como inúmeras particularidades identitárias, inerentes a todas as sociedades.
A ideia de nação como algo mais denso que a de população pressupõe o compartilhamento de narrativas a respeito de uma experiência nacional comum. A circularidade da frase é proposital: não há nação que dispense a presença de narrativas sobre si, que a apresentam – e reapresentam – como espaço nacional. Se quisermos, podemos falar em mitos que, independentemente de sua verdade factual, são compartilhados e fundam e mantêm identidades.
Mas nem tudo nessas narrativas compartilhadas deriva de ficções sobre origens míticas, como a loba romana ou a fixação do decálogo mosaico. Memórias e experiências comuns compõem aspectos fundamentais dessas narrativas, que não se reduzem a fábulas e constituem o acervo que temos para tentar responder perguntas a respeito do que somos, como coletivo nacional.
Policiais cercam prédio da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1964, quando teve início o regime militar no Brasil. (foto: Arquivo UNE/ Flickr – CC BY-NC 2.0)
Os anos vividos pelo Brasil sob estado de exceção – entre 1964 e 1985 – foram marcados por contínuas violações dos direitos humanos, por parte do Estado e de seus agentes públicos. Revelações recentes e esparsas dão alguma medida do horror dos corpos torturados, dos assassinatos e dos desaparecimentos.
A anistia decretada nos anos 1980 abrangeu as ações da resistência armada ao regime de exceção e estendeu sua cobertura aos “crimes conexos”, eufemismo que pretendia designar os atos cometidos pelos órgãos ditos de segurança. Tal anistia compreensiva, desde o início, estabeleceu uma assimetria: sabia-se quem eram os que se opuseram ao regime militar, mas deveriam permanecer desconhecidos os que perpetraram violações dos direitos humanos, definidas segundo critérios internacionalmente reconhecidos.
Tal manto de proteção, para além de ocultar os perpetradores, encobertos assim pelo segredo, trouxe a expectativa de que sua invisibilidade pudesse ser estendida aos mortos e desaparecidos. Saber a verdade a respeito de como morreram e de como e onde foram enterrados, implicaria, de acordo com uma versão ainda viva no país, em violar os termos da anistia, por criar condições para o surgimento de um ânimo punitivo com relação aos perpetradores de torturas e assassinatos.
O silêncio com relação aos perpetradores implica, portanto, a invisibilidade das vítimas e, por extensão, suprime da memória compartilhada pelo país um aspecto crucial da experiência das duas décadas de exceção.
A implantação da Comissão da Verdade, no Brasil, em gesto que segue o já adotado em dezenas de países que passaram por regimes de exceção, poderá vir a ser o marco de uma virada histórica. Para os familiares dos desaparecidos, para os que viveram a experiência da resistência e para o país em seu conjunto. Em especial para as gerações que não viveram – e, espero, não venham a viver – o horror de ser governadas por ditadores. Elas poderão construir suas interpretações próprias a respeito da história recente do país com base em uma narrativa que retira do silêncio experiências cruciais para o entendimento a respeito do que somos como nação.
Por Renato Lessa – Departamento de Ciência Política, Universidade Federal Fluminense e Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa