Aparício Torelly, o Barão de Itararé
Falsificar atestado médico ou certidão de óbito é crime contra a fé pública, com previsão legal específica (artigo 302 do Código Penal), assim como a falsidade ideológica (299), com conceituação genérica.
O Estado brasileiro praticou essas condutas delituosas –ou, em direito penal, seus agentes– ao atestar que Vladimir Herzog se suicidou no DOI-Codi de São Paulo, em 1975.
Até as pedras sabem que sua morte decorreu das torturas que ali lhe foram infligidas. O governador na época, Paulo Egydio Martins, acaba de declarar, no programa de TV “Dossiê Globo News”: “Não houve suicídio, Herzog foi assassinado”.
A contradição basta para manter aceso o debate sobre o alcance e a eficácia da Lei da Anistia (6.683/79), que usou a teoria do “crime conexo” para declarar impuníveis “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Teriam sido anistiados, por isso, agentes públicos que torturaram, fizeram desaparecer ou mataram “terroristas” entre 2/9/1961 e 15/8/1979, embora a citada lei não beneficiasse ativistas políticos que já haviam sido “condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.
Recentemente, quatro entidades representaram à Comissão de Direitos Humanos da OEA, reclamando investigação sobre as circunstâncias da morte do jornalista, para identificar e punir os responsáveis.
Chamado às falas, o governo brasileiro respondeu que o episódio está encerrado, em função da Lei da Anistia. Registre-se que, em 1978, a União foi civilmente responsabilizada pela morte de Herzog, em histórica sentença do juiz Márcio José de Moraes. A perplexidade, todavia, persiste na esfera criminal.
Nesse cenário, é imperioso encontrar um meio de, preservado o espírito da lei, esclarecer os fatos, para que eles possam ser levados ao patamar do definitivo esquecimento jurídico. A lei não pode coonestar, porém, a ignomínia de impedir pessoas de saberem o que aconteceu com o parente morto quando sob custódia do Estado.
Inaceitável, ainda, que seja imposta à família a patranha de que ele “suicidou” –e, nesse caso, avulta o fator religioso, pois Herzog era judeu, e o judaísmo recrimina o suicídio, sepultando em local separado os que se matam, conquanto neste caso o rabino Henry Sobel tenha, corajosamente, repudiado a versão do DOI-Codi e seguido, nos funerais, os ritos traçados nos cânones de sua fé.
O debate se prolonga e está longe de ser encerrado. E alonga-se também porque emergem aspectos acessórios, que sobrelevam os principais. No caso Herzog, o aspecto acessório que retornou ao debate é o problema do atestado (qual a causa mortis?), assinado por um legista, diretor do Instituto Médico Legal, e da certidão de óbito, expedida por cartório civil. Os documentos, teoricamente dotados de fé pública, são sabidamente falsos no conteúdo.
Há pouco, por solicitação de deputado federal interessado em aprofundar a pesquisa, requeri cópia autêntica do laudo necroscópico de Herzog. Nunca recebi o documento, apesar da Lei de Acesso à Informação.
Como se vê, o assunto não é tão singelo como querem alguns. Eis um caso em que a solução apresentada não equaciona o problema, antes o posterga, com perguntas que não querem calar.
Uma delas é esta: devem cruzar os braços o Estado, a sociedade e, sobretudo, a família do jornalista diante de situação em que, como observou Rui Barbosa, o “acessório usurpa definitivamente o domínio do principal”?
Fonte – Folha de S.Paulo