Ex-presos e ex-membros de guerrilhas passarão a ser lidos pelos futuros militares
O impulso dado às investigações e aos julgamentos de crimes cometidos pelos militares na última ditadura argentina (1976-1983) é o aspecto mais ruidoso e expressivo do relacionamento entre a Casa Rosada e as Forças Armadas desde que o casal Kirchner chegou ao poder, em 2003. Mas não é o único. Em paralelo e longe dos holofotes, o Ministério da Defesa elaborou, e neste ano começou a implementar, uma profunda reforma da carreira militar, modificando bibliografia, estrutura curricular e incorporando novas matérias e conceitos sobre História argentina, teoria do Estado e direitos humanos.
Entre os novos autores que passarão a ser lidos pelos futuros militares argentinos estão ex-presos políticos e até mesmo ex-membros de guerrilhas esquerdistas como os montoneros. Os antigos inimigos passaram a ser objeto de estudo.
Essa revolução quase silenciosa foi comandada pela ex-ministra da Defesa Nilda Garré, atualmente à frente da pasta de Segurança. Em sua juventude, em meados da década de 70, Garré foi a deputada peronista mais jovem da História do país e, durante a ditadura militar, militou na Juventude Peronista (JP). A ex-ministra desembarcou no Ministério da Defesa em 2005 e demorou alguns anos para conseguir o respaldo e a decisão política necessários para avançar numa mudança inédita e impensável em outros países da região, como o Chile, onde o poder civil não chegou tão longe no controle da estrutura militar.
A reforma começou a ser pensada alguns anos atrás e finalmente foi aprovada no ano passado, já pelo novo ministro Arturo Puricelli, de perfil bastante mais conservador, mas sem o apoio político necessário para desandar o que já fora feito por sua antecessora. A equipe encarregada de discutir e elaborar o conteúdo da reforma foi liderada pela antropóloga Sabina Frederic, da Universidade de Quilmes.
– Um de nossos principais objetivos é formar militares com mentalidade democrática e pensamento crítico – disse a antropóloga ao GLOBO.
Os militares, assegurou Sabina, devem abandonar o pensamento binário “e entrar em contato com outros pensamentos, que lhes permitam raciocinar sobre realidades complexas”. Todo conteúdo que apresentava uma visão favorável ao terrorismo de Estado dos anos 70 e, também, a políticas neoliberais, foi eliminado. Para Sabina, essa é “uma reforma integral que inclui matérias teóricas, exercícios de treinamento em campo e regras internas (os alunos passaram a ter mais tempo para ler, entre outras novidades)”, que buscou “fortalecer a formação profissional dos oficiais”, seguindo exemplos de países como Alemanha, França, Espanha e Estados Unidos. Na visão de Sabina e sua equipe, “a pobreza intelectual dos militares no passado impediu qualquer tipo de reflexão crítica”.
‘Instituição deve refletir sociedade’
– Era necessário democratizar o conhecimento e aproximar os militares do conhecimento que se ensina nas universidades públicas – assegurou a antropóloga.
Sua visão não é compartilhada por alguns professores do colégio militar, como Daniel Romano, que defende “a preservação do perfil militar da carreira”.
– Não podemos ser a Universidade Nacional de Buenos Aires. Muitos dos autores desta reforma acreditam que todo militar é antidemocrático, e isso não é verdade. Também existe autoritarismo nas universidades públicas – enfatizou Romano, que participou dos debates sobre a reforma, mas defendeu uma posição que terminou sendo minoritária, diante da ala que contava com o aval de Nilda Garré.
De fato, como promovia a equipe de Sabina, foram incorporados textos de autores que há muitos anos são estudados por alunos de universidades públicas de todo o país, como Beatriz Sarlo e Guillermo O’Donnell.
A antropóloga destacou, ainda, a importância de “promover o respeito pelos direitos humanos, a necessidade de protegê-los e de tolerar pensamentos diferentes”. Em outras palavras, a gestão Kirchner interferiu como nenhum outro governo civil o fez no âmbito das Forças Armadas, para abrir a cabeça dos novos militares e aproximá-los da vida real. Eles passarão a ler obras de cientistas políticos como Pilar Calveiro, uma ex-montonera que esteve sequestrada por um ano e foi torturada na sinistra Escola de Mecânica da Marinha (Esma, na sigla em espanhol), hoje transformada em museu dedicado à memória dos desaparecidos. “De onde provinha a pretensão dos torturadores de serem deuses? Sem dúvida, da convicção de serem amos da vida e da morte; de fato, eles tinham a capacidade de decidir a morte de muitas pessoas, quase de qualquer pessoa, no marco de uma sociedade na qual todos os direitos foram suprimidos”, diz Pilar, em um de seus trabalhos.
– Até pouco tempo, os militares estudavam a mesma versão da História que defendem ex-ditadores como Videla. A reforma era necessária – comentou Jorge Battaglino, professor da Universidade Di Tella e ex-diretor do mestrado de Defesa Nacional.
Para ele, “a ideia é que a instituição militar seja um reflexo da sociedade civil”.
– Hoje também temos mais judeus na carreira por que não existe mais um perfil antissemita, mais mulheres (13% do total) e até mesmo a homossexualidade deixou de ser proibida – enfatizou Battaglino.
De fato, dois militares gays, um tenente-coronel e um capitão, cujas identidades não foram reveladas, casaram-se recentemente num cartório portenho, após obterem autorização do Exército.
Nos chamados liceus militares, as escolas que funcionam no âmbito das Forças Armadas, o ensino de religião sumiu do mapa. Segundo Battaglino, a reforma foi bem recebida pela maioria dos militares, com exceção de setores pouco significativos, que não se conformam com a subordinação ao governo Kirchner e acompanham com angústia e preocupação o avanço dos julgamentos a ex-colegas acusados de terem violado os direitos humanos durante a ditadura. Para muitos, comentou uma fonte que conhece o clima nos quartéis argentinos, “o julgamento dos militares não terminará nunca, e essa situação mancha a imagem de todos, quando a maioria dos que estão na ativa nada teve a ver com as atrocidades cometidas”.
Na semana passada, Cristina anunciou um aumento de 21% dos salários dos militares, num jantar anual com a cúpula das Forças Armadas, um dos poucos eventos em que a presidente se encontra com os oficiais argentinos. Atualmente, a Casa Rosada destina apenas 0,8% de seu orçamento à Defesa, contra 6% injetados em Educação. Para Romano, “a reforma é importante, mas ainda falta na Argentina uma decisão política de recuperar nossas Forças Armadas”.
Fonte – O Globo