Rose Nogueira, 66 anos, dividiu cela com a presidenta Dilma Rousseff e foi torturada na ditadura militar. Hoje, comemora a instalação da Comissão da Verdade
Está vendo como eu remocei?” A “moça” em questão é a jornalista e militante dos direitos humanos Rose Nogueira, 66 anos, que recebe a reportagem da Tpm em sua casa no Sumaré, zona oeste de São Paulo, feliz da vida. “Remocei por causa da Comissão da Verdade [que vai apurar as violações dos direitos humanos ocorridas no Brasil entre 1946 e 1988, período que inclui a ditadura militar]. Estou esperando isso há 40 anos.”
A empolgação tem justificativa. Rose foi presa e torturada em 1969. Na época, era repórter da Folha da Tarde (Grupo Folha), casada com o colega Luiz Roberto Clauset e fazia parte do grupo de apoio da ALN (Aliança de Libertação Nacional), de resistência à ditadura. “Nunca fui guerrilheira, dava apoio logístico. Hospedávamos as pessoas em casa, fazíamos reuniões.” Entre os abrigados estava Carlos Marighella, comandante da ALN e o homem mais procurado do Brasil na época. “Ele era um amor. Dizia que a gente tinha que fazer revolução com poesia.”
Quando foi presa, seu filho, Cacá, Carlos Guilherme Clauset, hoje com 42 anos, mal tinha completado 1 mês de vida. “Me deram uma injeção para que o leite secasse e falavam: ‘Está ouvindo choro de criança? É do seu filho’”, lembra. Essa parte da tortura, porém, era psicológica. Cacá não corria perigo, já que Rose conseguiu que a criança ficasse sob os cuidados da sogra. Nos nove meses que passou encarcerada no presídio Tiradentes, em São Paulo, chegou a dividir a cela com mais 50 mulheres, entre elas a hoje presidenta Dilma Rousseff – eram conhecidas como “as donzelas da torre”. Seus olhos se enchem de lágrimas ao falar do dia em que a companheira tomou posse como a primeira presidenta do país. “Ver a Dilma passando em revista das Forças Armadas foi das coisas mais emocionantes da minha vida.”
Mulher na TV
Isso é só uma parte das experiências que acumulou ao longo da vida. Há 12 anos, Rose é militante do grupo Tortura Nunca Mais e, de 2006 a 2009, presidiu o Condepe-SP (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), tendo publicado em 2007 o livro Crimes de maio, que mapeia os assassinatos ocorridos durante as ações do PCC (Primeiro Comando da Capital) em 2006. Segundo os militantes, na época 493 jovens foram mortos pela polícia militar, no estado de São Paulo. Também pelo órgão, cuidou de casos como a existência de bolivianos escravizados no Brasil. “Sou militante dos direitos humanos. Onde existir uma causa relacionada a isso, estarei lá.” Rose não para. Além de se ocupar da Comissão da Verdade como representante do Tortura Nunca Mais, faz um documentário independente sobre o tema.
Mesmo tendo sido, entre outras coisas, editora do Jornal Nacional e uma das criadoras do TV mulher, programa da Globo exibido na década de 80 que lançou Marília Gabriela e Marta Suplicy, nunca abandonou a militância. “Faltei ao coquetel de lançamento do TV mulher porque achei mais importante ir à vala de Perus [implantada ilegalmente no cemitério Dom Bosco, em São Paulo] procurar meus companheiros desaparecidos.”
A vida atuante, porém, nunca ofuscou a vaidade de Rose. Com as unhas vermelhas, conta que sempre gostou de moda e se orgulha de seus dotes de costureira. “Fazia minhas roupas e a Gabi chegou a usar no ar um blazer que fiz”, lembra. “Nunca sofri patrulha, os companheiros bem que gostavam”, ri.
Durante a entrevista, que durou sete horas, Rose cozinhou para a repórter, atendeu inúmeros telefonemas e se emocionou algumas vezes – uma delas ao lembrar da morte do jornalista Vladimir Herzog, seu ex-chefe e amigo. Hoje, se empolga não só com a Comissão da Verdade, mas também ao ver jovens fazendo os “esculachos”, movimentos em que pessoas se unem e “denunciam” as casas onde vivem torturadores. “Tem muita coisa maravilhosa acontecendo”, comemora.
Rose aos 3 anos
Tpm. Você disse que esperou 40 anos pela Comissão da Verdade. Como está vivendo este momento?
Rose Nogueira. Esperei por isso 40 anos. Então, quero que seja bem-feita, não é? Vou sugerir três subcomissões, uma ligada aos índios, uma aos camponeses e uma sobre censura. A lei fala que censura é violação dos direitos humanos. O Caetano e o Gil eram de alguma organização? Não, eram artistas. O que mais incomodava a ditadura era o pensamento, era você ser uma pessoa que pensava.
O que espera que aconteça? A comissão tem que ser precisa. E é necessário fazer grupos de trabalhos temáticos. No caso dos índios, imagina o que a Transamazônica não fez com aqueles caras? E os movimentos dos campos, onde foram parar aquelas pessoas? Quantos desaparecidos devem ter sobre os quais não sabemos? E temos que pensar em relações exteriores. Porque cada embaixada tinha um adido militar. Sabemos de brasileiros que sumiram na Argentina, de gente que foi procurada fora do Brasil. E muitos exilados contam que foram perseguidos por policiais na Europa. Temos que pesquisar isso. São poucas pessoas cuidando da comissão. Os grupos da sociedade civil têm que ajudar.
Como aconteceu seu envolvimento com a luta política? Quando tinha 18 anos, frequentava reuniões do Partidão [como é conhecido o Partido Comunista Brasileiro, o PCB] mesmo não sendo militante. Eu namorava o [jornalista] Paulo Vieira, que era o homem mais bonito da editora Abril [risos]. O irmão dele era meu amigo e estava sendo procurado. E a minha alma era de esquerda, queria ficar perto dessas pessoas. Eu era uma jovem interessada em pessoas cultas.
O que fazia na época? Trabalhava na revista Intervalo, que era de programação de TV, mas comecei a fazer pequenas matérias porque gostava de escrever. Saí da Abril e fui trabalhar no Shopping News, um jornal importante na época. Foi quando tive meu registro de repórter. Foi lá que aprendi jornalismo, com um cara chamado Hermínio Sachetta, que me ensinou tudo. Fui para a Folha recomendada por ele, e meu chefe era o Frei Betto, um excelente jornalista e uma pessoa muito especial. Um pouco depois, ele começou a ser procurado. Na Folha foi onde também conheci meu primeiro marido, o [Luiz Roberto] Clauset. Quando nos casamos, ele já estava na clandestinidade.
Você chegou a viver na clandestinidade? Não, minha vida era totalmente na legalidade. Trabalhava, estava grávida. Mas havia reuniões lá em casa. De vez em quando, aparecia o [Carlos] Marighella [comandante da ALN, assassinado pelos militares]. Ele dormia em casa, era procurado, não podia sair à noite. Ele era um homem muito alto, uma figura impressionante. A energia e a doçura dele eram realmente impressionantes! Em um dos dias que foi em casa, me trouxe o livro Parto sem dor. Imagina, ele era o homem mais procurado do Brasil e me trouxe esse livro. E, enquanto esperava o pessoal para a reunião, ficava comigo fazendo os exercícios do livro, como respiração de cachorrinho [risos]. Ele gostava muito da comida que eu fazia. Quando sabia que ele vinha, saía para comprar laranja, fazia arroz, feijão e banana crua, que era o que mais gostava.
Esperava ser presa? De jeito nenhum. O AI-5 foi em dezembro de 1968. Me casei no início de 69, quando começou a grande repressão. A ALN começou a cair e fomos presos em 4 de novembro, no mesmo dia que mataram o Marighella. Prenderam muita gente naquele dia.
Como acha que chegaram até você? No meu processo estava que eu abrigava terroristas. Fui processada em três artigos da Lei de Segurança Nacional. O Clauset ficou preso um ano e nove meses. Fomos presos porque caímos, porque aconteceu. Jamais vou julgar alguém que tenha falado alguma coisa sob tortura. A tortura é qualquer coisa de absurda. Eu não consigo explicar. Está fora do que a mente humana pode explicar. É a perversão máxima. E não se pode falar nada de alguém que falou alguma coisa sob tortura [levanta a voz] porque você fica absolutamente fora de si.
E você tinha um filho de 1 mês… Fui presa pelo [delegado] Sérgio Fleury, que queria levar meu filho para o juizado de menores. Fiz uma coisa que você só faz quando está com sua cria. Falei: “Eu não vou. Só vou se ele ficar com a minha família”. Ele disse: “Você sabe que posso usar de violência?”. Respondi: “Sei, mas eu não vou”. Acho que não tem nada mais forte do que a maternidade. Lembro de mim ali, falando para ele: “Não vou”. Ele deixou dois tiras na minha casa. Dois loucos que derrubaram tudo, pareciam uns ratos. Pegavam uma nota de supermercado e falavam: “O que é isso?”. Tudo aos berros. Me amarraram no sofá da sala e não me deixaram ficar no mesmo quarto que meu filho. Só me deixavam ir atrás do Cacá para dar de mamar quando ele chorava. Tudo isso foi de madrugada. No dia seguinte, vieram me pegar e o Cacá ficou na casa da minha sogra. Acontece que aquele era o dia da desgraça. Ela não estava, só a diarista. Deixei ele naquele bercinho de carregar nenê chamado moisés, deixei várias mamadeiras porque ele já tomava um complemento. Deixei tudo arrumado. E um dos tiras falou assim, sempre com a mão no revólver: “Escreve aí, ‘estou no hospital com uma amiga que operou a garganta’”. Como iam acreditar nisso? E não tinha sido um parto fácil, tive um parto com fórceps. Sofri um rompimento na bexiga na hora do parto e fiquei 20 dias no hospital.
Então você ainda estava convalescente. Estava totalmente convalescente. E, por isso, eles me acharam esquisitíssima. Minha sogra diz que soube da nossa prisão porque tinha um jogo de decisão na TV aquele dia. Interromperam o jogo para dizer que o Marighella tinha sido morto e que tinham sido presos também os terroristas tal e tal, e falaram nossos nomes. Fomos presos pelo Dops [Departamento de Ordem Política e Social]. No meu processo há o nome de todos os torturadores.
Como foi ficar presa com um filho de 1 mês do lado de fora? Foi terrível. Meu filho ficou com a minha sogra pelos nove meses e meu padrasto morreu quando eu estava lá. Teve um enfarte. E, para me ocupar, com medo da minha reação, ficavam me dando ordens: “Faz isso, Rose, lava”. A gente tinha que ficar raspando o chão com umas faquinhas porque tinha uma crosta de sujeira na cela.
A gente raspava, limpava, pintava, arrumava tudo. Fiquei sabendo da notícia por uma carcereira, mas não quis ir ao enterro. Teria que ir e voltar escoltada. Imagina, ir algemada com escolta ao enterro do meu padrasto! Eu só iria piorar tudo. Ia disputar com a dor da perda? E o que aquela polícia ia fazer? Ameaçar a minha família? Já tinham ameaçado uma vez.
“Me deram uma injeção para cortar o leite. Tinha um torturador que falava que não gostava de ver o leite escorrendo”
A sua sogra levava seu filho para visitar você? Ele ia de vez em quando, mas depois preferi que não fosse mais. Era sempre uma despedida e a dor era enorme. Teve um dia que ele estava lá com a minha sogra e um policial falou: “Sabia que eles queimam bebê?”. Me deram uma injeção para cortar o leite. Para ser torturada, eu ficava nua, e tinha um torturador tarado, um filho da puta, que falava que não gostava de ver o leite escorrendo do meu peito. Saí nove meses depois, com meu filho já quase andando.
Você ficou presa na chamada Torre das Donzelas, junto com a hoje presidenta Dilma Rousseff. A Dilma agora é presidenta do Brasil, então, não gosto de falar muito dela. Não fomos íntimas, não quero parecer que estou querendo alguma coisa às custas dela. Ficamos três meses na mesma cela. O que posso dizer é: ela estudava pra caramba. Era Copa do Mundo e mesmo assim ela estudava. E o nosso problema era o seguinte: o Brasil não podia ganhar porque, se ganhasse, os caras iam deitar e rolar, iam sair prendendo e torturando gente. Mas também não conseguíamos torcer contra, era mais forte.
Ficávamos numa batalha interna [risos]. Foi a primeira vez que a gente teve uma televisão na cadeia. Lembro da Dilma como uma das intelectuais do grupo. E doce. Ficou com essa fama de brava, mas não era. Ela é a primeira presidenta do Brasil, tinha que se impor. Mas ela é muito bem-humorada. É da piada rápida. Dava apelido para as pessoas. Tinha uma menina chamada Oésia e ela dizia: “Vou te chamar de consoante, porque já tem muita vogal nesse nome” [risos].
Havia união entre as mulheres na cadeia? Entre as mulheres tinha muita união. Muita mesmo. Conheci lá as pessoas mais extraordinárias da minha vida. E nossa união prevalece até hoje. Já faz 42 anos, acho que tem poucos sentimentos de afeto tão profundos como o que sinto por aquelas pessoas. Que gostosura que é encontrar as meninas. Não conheci pessoas melhores. Cada uma com seu jeito, sua personalidade, mas todas maravilhosas. Lembro que fiz aniversário lá no Tiradentes. Alguma delas tinha um bolinho Pullman, porque as famílias levavam comida. Cantaram parabéns para mim com aquele bolinho.
Você chegou a ser julgada? Sim. Meu julgamento durou dois dias, era um julgamento importante. Fui absolvida. Mas já tinham desgraçado e acabado com as nossas vidas, não é? Quem devolve o primeiro ano do seu filho? Até o casamento, tentamos. Mas você tem tanta preocupação, tanta coisa para ver junto, é tão ameaçado que vira uma amizade fraternal. Isso aconteceu com muita gente.
E, no fim, você foi absolvida. Quando saí, foi em liberdade vigiada. Toda semana tinha que ir assinar um livro na auditoria militar. Fiquei dois anos fazendo isso. Não podia chegar depois das dez [da noite] em casa e não podia sair da cidade. E, principalmente, não podia trabalhar. Como ia ajudar a minha família, criar o meu filho? Era a época do “Brasil: ame-o ou deixe-o”. A gente tinha saído do presídio e não podia fazer nada. Fui trabalhar, podendo ou não, em uma revista no Bom Retiro, chamada Construção em São Paulo. Toda sexta-feira saía, tomava um táxi correndo e ia lá assinar o papel. Eles não sabiam que eu era presa política, claro. Eles adoravam os militares!
Você pensou em sair do Brasil, se exilar? Não. Não pensei. Quando me separei, todos queriam que eu fosse. Mas tinha pavor do exílio. Um pavor de ir para outro país com o meu filho, em uma situação de insegurança. Não conseguiria. Aqui, tinha uma família enorme, que sempre foi muito afetuosa comigo, com meu filho. E minha
família não era rica, não ia poder me ajudar.
O que seria do meu filho? Eu ainda ajudava muita gente a sair do Brasil depois que saí da prisão, mas pensava: “Ah, se vierem em cima de mim, que venham de novo. Já sei como funciona a ditadura”.
Rose aos 18 anos
E depois você foi trabalhar com direitos humanos, pegando casos ligados à maternidade. Ah, sim. Sempre que tem a ver com mãe o negócio é comigo. Quando estava no Condepe-SP [Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, que ela dirigiu por três anos] conheci as Mães de Maio [grupo de mães cujos filhos morreram nos chamados crimes de maio, em 2006] e virei uma espécie de madrinha. Casos de adoção também vinham parar na minha mão. E, mesmo agora, que não estou mais no Condepe-SP, casos escabrosos aparecem aqui. Sou uma militante dos direitos humanos. Onde houver um caso que precise de mim, estarei lá. E nunca recebi dinheiro por isso.
Como você conseguiu, depois da prisão, retomar sua vida profissional e ter uma carreira de sucesso? Você vai levando. Voltei a trabalhar na editora Abril e me casei de novo, com aquela belezura do [jornalista] Celso Nucci. Em certo momento, meu ex trabalhava junto comigo e com meu marido, na Abril. Todos se davam bem. Mas achei a situação estranha e decidi sair. Fui para a TV Cultura. Entrei como repórter, achava estranho fazer matéria para TV, mas me apaixonei. E tive como professor o Vlado [Vladimir Herzog]. Uma aula de cinema dada por ele era uma coisa maravilhosa! Ele era um professor de cinema e de televisão para todos nós. Ficou muito meu amigo, muito mesmo. A gente ia para a moviola e via os filmes do Vietnã. Ele me ensinava como cortar aquilo – e eu sempre fui estudiosa –, então, sabia tudo sobre o Vietnã.
E como você lidou com a morte de mais um amigo querido? Depois que o Vlado morreu [em 1975], fui morar em Campinas. Meu ex-marido, o Celso, era de lá. Realmente não dava para ficar aqui. Eu não conseguia nem entrar na TV Cultura, sabia que era alvo. Imagina, eles diziam que o Vlado se matou, a gente sabendo que ele tinha sido assassinado, como não ia sobrar para mim, que era ex-presa política e amiga dele? E, fora isso, ele era muito meu amigo. Foi como se começasse todo o pesadelo de novo. Perdi o chão. Meu marido tinha uma loja de arte popular lá. Mas a vida é dura, né? Uma hora ficou difícil até comprar o lanche da escola para o meu filho. Aí peguei um ônibus e bati na porta da TV Globo, onde falei com um amigo. E foi assim que virei editora do Jornal Nacional.
“Ajudava muita gente a sair do Brasil. Pensava: ‘Se vierem em cima de mim, já sei como funciona a ditadura”
E como você foi parar no TV mulher? Fui convidada pelo diretor Nilton Travesso, que é um gênio. Entrei no início do programa. Eu escrevia todos os roteiros. E a Gabi [Marília Gabriela, uma das apresentadoras] nunca mudou uma vírgula. Posso ganhar qualquer concurso de datilografia. O programa se fazia praticamente sozinho.
Até hoje o TV mulher é tido como um programa moderno, não? Sim, o programa era inovador. Foi a primeira vez que se falou de muitas coisas na TV. Estava chegando a abertura [política] e a Globo queria limpar a barra dela. Tinha tido a anistia, eles queriam se distanciar dos quepes. Então, a emissora nos deu muito espaço. Falava: “Pode meter o pau”. E muita coisa aconteceu por acaso. Por exemplo, a Marta [Suplicy] não era para ser do programa, mas sim a prima do Eduardo [Suplicy], a Heleninha Matarazzo, que escreve sobre amor. Mas ela ficava muito tímida em frente à TV. Quando a luz acendia, ela começava a chorar. Não conseguia.
E um dia disse: “Tem a namorada do Eduardo, a Marta, que é sexóloga”. E a gente: “Sexologia, o que é isso?”. E o engraçado é que a Marta era tímida. Ela falava com aquele jeitinho dela, com muita doçura, sobre a importância do orgasmo. “Ah, se você não souber, você pode pensar em se masturbar [risos].” A censura vinha, né? E as Senhoras de Santana [grupo católico formado na década de 80 que protestava contra a sexualidade e defendia a censura] iam fazer movimento contra a Marta na porta da Globo. E a Gabi, nossa, ela é do cacete. Não existe outra igual. Ninguém é tão boa entrevistadora como ela. Até hoje. E ela não é mais importante que o entrevistado, uma coisa que a gente vê muito por aí. A gente fazia bem, com muita simplicidade. E eu continuava lá, com a minha militância contra a ditadura. Era um bom trabalho, mas não era uma militância. Eu separo muito bem as duas coisas. E nessa época eu estava fundando o PT [Partido dos Trabalhadores].
“Faltei ao lançamento do TV Mulher porque achei mais importante ir à vala de Perus procurar meus companheiros”
Como dava conta das duas coisas? Perdendo algumas. No dia do lançamento do TV Mulher, faltei ao coquetel porque achei mais importante ir à vala de Perus procurar meus companheiros desaparecidos. Inventei qualquer desculpa na Globo, mas achei que fazer isso era mais importante.
Quando você começou a se interessar por política e direitos humanos? Não sei ao certo. Eu era leitora do Última Hora [na época, um jornal de esquerda, fundado por Samuel Wainer] e virei jornalista porque queria ser repórter de política de lá. E uma das coisas que lembro bem do passado é da minha avó, operária têxtil, contando como era o trabalho dela. Ela ficava 14 horas em pé, em volta de uma máquina de tear. Era italiana, ajudou a me criar e foi muito importante na minha vida. Meu pai morreu em um acidente de carro quando eu tinha 4 anos. Na época, minha mãe tinha 21 anos e estava grávida do meu irmão. Ela se casou de novo, com o meu padrasto, que era viúvo e 30 anos mais velho. Ele já tinha quatro filhos e ela teve mais duas filhas com ele. Viemos morar em São Paulo [Rose nasceu e foi criada em Jacareí, interior do estado].
Meu padrasto era uma pessoa extraordinária. Mas minha vida mudou radicalmente, fui para um colégio de freiras junto com as minhas irmãs.
Você é muito ligada ao seu filho e à sua neta. É uma avó convencional? Sou mãezona e avó completamente apaixonada pela Manoela, que tem 2 anos e meio. Formamos uma família expandida. Sou muito amiga do meu ex-marido, e a atual dele foi presa comigo. Passamos todo Natal juntos. Adoro o filho dela do primeiro casamento. E também os filhos que ela teve com o Clauset, que são irmãos do meu filho. Se é aniversário da minha neta, vamos todos juntos. É normal irmos para Campinas no carro do meu ex-marido, junto com a mulher dele, que é minha amiga.
Como consegue dar conta disso tudo, militância, família, trabalho? A minha mãe falava que eu era boba alegre, igual ao meu pai. A parte da família do meu pai é assim mesmo. Eu dou risada. Se eu tiver alguma qualidade, é esta: sou bem-humorada. Para mim não existe não dar certo. Por exemplo, vou na padaria e está fechada. Aí, sei lá, vou até a esquina e dou uma volta. Acho que sempre tem um jeito. Sempre lidei com ter que fazer alguma coisa assim, com bom humor.
Mas você convive, na sua luta como militante, com coisas tristes. Como consegue dormir depois? Às vezes não durmo. Quando você começa a se envolver, cada hora surge uma coisa e você não para mais.
Você lançou pelo Condepe-SP o livro Crimes de maio. Você se envolveu muito nesse caso? Em 2006, começou aquela loucura! Você lia notícias sobre mortos, toque de recolher. Tinha alguma coisa muito estranha acontecendo e marquei uma reunião de urgência no Condepe-SP. Criamos uma comissão independente de investigação. Chamamos o Conselho Regional de Medicina, a OAB, o Ministério Público, a Defensoria Pública e começamos a trabalhar. O número de mortes começou a subir. Aí o presidente do Conselho Regional de Medicina conseguiu contratar legistas independentes para ficarem 24 horas no IML [Instituto Médico Legal]. Concluíram que todos foram assassinados à bala e começaram a fazer autópsia. Como jornalista, sabe o que mais me doía? Ver os jornalistas aceitarem aquilo com naturalidade. Saiu uma manchete de jornal que era: “Polícia mata mais 70 suspeitos”, como se fosse “Paulistano bebe muito café”. Gente, são seres humanos, você não pode banalizar a vida de um ser humano! A polícia matou 117 pessoas em um dia, imagina. Teve uma coisa louquíssima que fiquei sabendo: dez entregadores de pizza morreram naquela noite. Olha isso, a classe média ficou em casa, pediu pizza, mataram o cara. Lançamos o livro Crimes de maio como trabalho da comissão. Mas, um dia, vou ter que escrever essa história, os detalhes todos dela…
Como você lida com o envelhecimento? Tenho 66 anos, mas não parece. Não fiz plástica e tenho essa idade contra a minha vontade [risos]. Não gosto de envelhecer porque poderia fazer muito mais coisa, né? Queria ajudar mais as pessoas, meu trabalho com direitos humanos é o dia inteiro. E não posso mais fazer certas coisas porque fico cansada. Sou uma sobrevivente. Saí da cadeia aos 25 anos sabendo disto: o que tivesse de tempo, seria para ajudar os outros.
Fonte – Revista TPM