Universidade de Brasília deve instalar em agosto a comissão que pretende resgatar e esclarecer episódios ocorridos durante a ditadura militar contra alunos e professores. Grupo pretende identificar quem eram os informantes do governo na instituição
Honestino Guimarães (em pé, à direita) foi um dos estudantes perseguidos pelos militares na UnBAs páginas em branco deixadas pela ditadura na história das famílias dos estudantes da Universidade de Brasília podem começar a ser preenchidas. No início de agosto, a Comissão da Verdade da UnB iniciará os trabalhos para recolher documentos e depoimentos sobre o que ocorreu na instituição no período compreendido entre 1964 e 1988, quando foi promulgada a atual Constituição Federal. Além de contribuir com o grupo nacional, uma das intenções é identificar quem foram os colaboradores do regime dentro da universidade e quais direitos dos que resistiram ao regime foram violados. Outro ponto a ser tratado é o resgate do projeto inicial idealizado por Darcy Ribeiro ao fundar a instituição de ensino superior, criada para ser o centro de pensamento cultural livre de Brasília.
Até hoje, as informações sobre a resistência e a repressão dos militares foram coletadas a partir de testemunhos. Professores reintegrados e alunos contaram o que viveram à época. Com a recente Lei de Acesso à Informação, uma outra versão dos fatos pode ser descoberta. Os arquivos do Serviço Nacional de Informações (SNI) — que antes traziam com tarjas pretas sobre os nomes dos envolvidos com a repressão e atentados aos direitos humanos — agora estão liberados no Arquivo Nacional e na própria universidade.
De acordo com José Otávio Nogueira, um dos entusiastas da proposta e professor do Departamento de História, a pesquisa pode trazer revelações surpreendentes sobre os anos de chumbo. “Já começam a pipocar papéis do monitoramento do regime na UnB até a primeira eleição democrática, quando Cristovam Buarque tornou-se reitor”, afirma. Além disso, o historiador espera encontrar comprovantes que expliquem a represália sofrida pelos docentes que não conseguiram progredir na carreira porque defendiam outras questões ideológicas.
Os relatos dos arapongas instalados pela ditadura devem apontar como eram tratados os desaparecidos políticos, como Honestino Guimarães, Paulo de Tarso e Ieda Delgado, ex-estudantes da UnB que posteriormente foram sequestrados e assassinados pelos militares. Documentos revelados pelo Correio, publicados em abril, mostram algumas das acusações contra o maior símbolo da resistência brasiliense. Honestino era acusado pelo governo de “promover e orientar a ação subversiva na UnB e ser o responsável por todas as crises por que tem passado a instituição. Um agitador contumaz e pernicioso ao ambiente universitário”.
Iniciativa positiva
Para o sobrinho do ex-presidente da Federação dos Estudantes Universitários de Brasília (Feub) Mateus Guimarães, 26 anos, toda iniciativa no sentido de revelar a verdade dos fatos é positiva. “A cada pedacinho da história do meu tio que descubro, conheço um pouco mais de mim, das minhas atitudes e reações”, diz. Em uma conversa recente com Cláudio Almeida, amigo e companheiro de Honestino, o jovem ouviu uma história sobre uma fuga do tio. “Eles estavam em uma van. Um estudante simulou estar passando mal e os militares abriram a porta para ver o que era. Nesse momento, Honestino saiu correndo. Os policiais atiraram contra ele, mas não o atingiram”, relata. A história já era conhecida pelo rapaz, mas um pequeno detalhe completou mais uma peça do quebra-cabeça. “O Cláudio contou que o episódio foi perto do Zoológico. Isso fez toda diferença. Agora, quando eu passar por ali, vou poder lembrar e refletir”, disse.
A Comissão da Verdade, em nenhum âmbito, tem força penal, ou seja, não pode punir ou exigir prisões. A intenção é mudar a relação da universidade com a história, além de revelar fatos do passado importantes para o futuro da comunidade acadêmica.
A investigação
Como funcionará a Comissão da Verdade da UnB:
» Possivelmente será formada por 11 integrantes. A nomeação ainda não foi realizada. Os membros não vão parar as atividades acadêmicas e as pesquisas serão feitas em conjunto.
» Os levantamentos focarão o período compreendido
entre 1964 e 1988.
» O colegiado atuará em duas frentes: reunir documentos relacionados aos direitos humanos e liberdades individuais feridas na ditadura no Arquivo Nacional ou no conjunto de dados da própria universidade. Além disso, colherá depoimentos de alunos, docentes e outras pessoas que vivenciaram o período.
» Os trabalhos serão concluídos antes da Comissão da Verdade Nacional. A intenção é contribuir com informações consistentes para levantar o que ocorreu na UnB na ditadura e complementar o trabalho já realizado. A previsão é que a pesquisa seja concluída no início de 2014.
» Haverá debate para tentar compreender como o projeto de vanguarda, revolucionário, idealizado por Darcy Ribeiro, acabou reprimido. Pretende-se ainda promover o resgate desses ideais.
» O grupo deve firmar parcerias com outros órgãos para ter acesso a outros documentos e informações.
» A comissão vai apurar quais foram os colaboradores do regime militar dentro da UnB.
Artigo
Mateus Dounis Guimarães, sobrinho de Honestino Guimarães e membro do
Comitê pela Verdade, Memória e Justiça do DF
9.692 dias… e depois?
Fosse eu o meu tio, teria desaparecido no sábado passado, 21 de julho de 2012.
Honestino Monteiro Guimarães nasceu em 28 de março de 1947 e o último relato confirmado sobre ele data de 10 de outubro de 1973, quando completava 9.692 dias de existência. Eu nasci em 7 de janeiro de 1986, e completei 9.692 dias de vida há exatamente uma semana.
Se fosse comigo — estivesse eu clandestino por lutar pelos direitos de todos nós — minha mãe teria recebido três dias depois, aqui em Brasília, um bilhete comunicando que eu teria sido “internado”, código que Honestino e a minha avó Maria Rosa tinham estabelecido para informar sua prisão. Depois da notícia, vovó correu para o Rio de Janeiro com o meu pai, Norton, iniciando a angustiante busca. A única informação que conseguiram foi que ele havia sido sequestrado pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar). Na certidão de óbito, emitida no âmbito da Lei nº 9.140/1995, consta tão somente:
“… lavrado o óbito de Honestino Monteiro Guimarães, falecido aos 10 dias do mês de outubro do ano de 1973, em hora ignorada, em local ignorado (…) Causa mortis: . Médico atestante: Dr(a) . , Local de sepultamento: . ”
Muitas lacunas. Páginas de uma biografia que permanecem em branco. Com esse documento, a única coisa que o Estado assumiu — a data em que o sequestraram — ainda o fez querendo enganar, ao colocar como a data do falecimento. Ao meu ver, soa como uma tentativa, digamos, de evitar quaisquer perguntas desse dia em diante.
Frustrações perversas para uma mãe que só queria encontrar o seu filho. Desde então, o Estado brasileiro perpetua a tortura, na medida em que não teve a coragem, o respeito e o compromisso com seu povo que Chile, Argentina, Peru, Uruguai e tantos outros países demonstraram ao efetivar um processo real de Justiça de Transição.
As lacunas são como barreiras que me impedem de compreender por completo a dimensão dessa história na minha vida. Em busca de respostas, faço o doloroso exercício de me colocar no lugar dele: se, aos meus 9.692 dias de vida, tivesse sido raptado e levado para a tortura, o cárcere e a morte? Penso na minha família, em minhas amigas e amigos e como a notícia iria impactar a todos. Penso em meu povo e no quanto eu ainda gostaria de contribuir com sua emancipação. E me indigno ao cogitar a remota possibilidade de justiça que teria nesse sistema, cujo regime é definido pelo poderio econômico.
O exercício é limitado pelas dúvidas. Em 15 de outubro de 1973, 9.699 dias depois de nascido ele ainda estaria vivo? Afinal, o que aconteceu? Como ele resistiu? Como tratou os torturadores? Já que se preparava para o pior, como reagiu nos últimos momentos? Que palavras pronunciou? Como foi? Quem? Quando? Onde?
As perguntas se esvaem no choque com a realidade: vivo em um país no qual, ainda hoje, centenas de famílias têm de lutar para tentar garantir o direito à memória e à verdade. Por isso, reivindico e luto por esses direitos, não só pela minha família, pelas famílias dos mortos e desaparecidos políticos e pelos que foram violentados pela ditadura civil-militar no país. Mas por todos que têm seus direitos sequestrados por esse sistema opressor, gerador da impunidade perpetrada pelo Judiciário brasileiro.
Nessa perspectiva, a luta pelo direito à memória e à verdade soma-se à luta em defesa das crianças sem infância, das mães desamparadas, dos trabalhadores escravizados. Luta pelo direito à terra e à soberania alimentar; dos povos indígenas atingidos por desmatamentos e hidrelétricas; dos ribeirinhos cujos rios foram poluídos; dos quilombolas para manterem suas raízes, das comunidades tradicionais de matriz africana contra os apartheids contemporâneos; dos jovens das periferias; das populações em situação de rua. Enfim, nossa luta é uma, pois nosso inimigo é o mesmo.
As perguntas não cessam, por vezes voltam refletindo sobre as imensuráveis perdas. O que Honestino faria hoje? Um cara inteligentíssimo e dedicado, que, desde criança, sonhava ser presidente do Brasil, certamente o seria se assim quisesse. E as outras tantas vidas brilhantes ceifadas na barbárie? Que diferença fariam hoje tantos sonhos e projetos de nação que, como a Universidade de Brasília, foram aniquilados? Como dimensionar tantas perdas?
Na dúvida se as perdas serão superadas um dia, fico com a resposta de Honestino, registrada no mandado de segurança popular escrito em seus últimos dias de liberdade clandestina: “A justiça a que recorro é a consciência democrática de nosso povo e dos povos de todo o mundo”.
Impactos no projeto de Darcy Ribeiro
Para Mateus, sobrinho de Honestino, os fatos precisam ser revelados
Quando abriu as portas, em 1962, a Universidade de Brasília tinha um projeto inovador, classificado por muitos como revolucionário. Darcy Ribeiro pensou uma universidade livre, sem política de créditos definida para a formação. Um ambiente universitário no qual as pessoas formariam o conhecimento a partir das trocas coletivas, no Instituto Central de Ciências. Isso se perdeu após a reforma da educação, com a padronização do ensino superior. Hoje, embora ainda seja possível fazer matérias alternativas, algumas experiências se perderam.
Em 1966, por exemplo, Honestino estava inscrito no curso de extensão de futurologia. As aulas eram ministradas por Gilberto Freyre, um dos mais importantes pensadores brasileiros do século 20. A experiência quase impensável nos dias atuais incluía aulas teóricas e com aplicação prática em conjunto com a sociedade. “Voltar a debater esse projeto seria a maior contribuição dessa comissão, mas é preciso muita coragem e disposição, tendo em vista que colocará em questão a maneira como a universidade está estruturada. As mudanças provocadas pelo regime no plano de Darcy e de Anísio Teixeira seriam uma balança para dimensionar os impactos da ditadura”, afirma Mateus Guimarães.
O projeto previa o pensamento independente, crítico, com autonomia na gestão intelectual estava completamente fora dos padrões do Estado na época. “A UnB representava a liberdade de pensamento, tudo que era mais combatido pelo governo da época. Começou então a política de terror, de punir quem questionasse. Alguns resistiram, mas muito se perdeu”, lembra o professor de direito Cristiano Paixão. (MA)
Fonte – Correio Web