A memória de um silêncio

Ao longo dos últimos meses apareceram novos livros que tratam de diferentes aspectos da repressão nos anos do regime militar. Pode-se ter a impressão de que a questão do resgate da memória ganha espaço na produção editorial brasileira. Agora mesmo chama a atenção o lançamento dos livros do repórter Leonencio Nossa, “Mata! O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia”, e “Memórias de Uma Guerra Suja“, que reúne entre os autores dois jornalistas, Marcelo Netto e Rogério Medeiros, e um antigo agente da repressão em seu período mais duro, Claudio Guerra.

Mas a verdade é que, passadas várias décadas do fim do regime militar e da censura, o Brasil dedicou espaço apenas relativo ao resgate da memória de seus tempos de breu. Uma comparação superficial com vizinhos que também padeceram as agruras de regimes militares fortalece essa sensação de escassez. Pode-se dizer, e com razão, que o Brasil não enfrentou nada parecido ao que aconteceu na Argentina, com seus 30 mil mortos e desaparecidos, com seu roubo sistemático de bebês nascidos em cativeiros clandestinos, com seus “voos da morte”, quando prisioneiros eram jogados vivos de aviões no mar. Em compensação, o Brasil viveu debaixo de ditadura longos 21 anos. Até mesmo o Uruguai, um país cuja população inteira cabe várias vezes em cidades como São Paulo ou Rio, produziu, proporcionalmente, mais livros tratando do passado que o Brasil. É como se o tema da memória, da busca do acontecido, estivesse fora da esfera de interesse tanto de leitores como de autores.

Após um primeiro momento, ainda nos anos 1980, com a sequência de livros de René Dreifuss, Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Jacob Gorender e um punhado mais, conta-se nos dedos o que veio depois. Em sua maioria são livros jornalísticos, uns com mais, outros com menos rigor em sua investigação e pesquisa.

Mas, a não ser por escassas exceções, e de imediato recordo três livros – “Memórias do Esquecimento”, de Flávio Tavares, e “Uma Tempestade como a Sua Memória”, de Martha Vianna, ambos editados pela Record, e o demolidor “K.”, de Bernardo Kucinsky, da Expressão Popular -, se houve bons trabalhos jornalísticos ficaram faltando textos de qualidade literária.

Tome-se, uma vez mais, a produção uruguaia, chilena ou argentina sobre seus respectivos anos de chumbo, e há textos esplendorosos. No Brasil, fora os mencionados e pouquíssimos outros, os autores ficaram devendo.

É nesse cenário de escassez que aparece o belo “Antes do Passado”, de Liniane Haag Brum, lançado pela pequena Arquipélago Editorial. O livro conta a busca inglória de um fim inalcançável: reconstruir a figura de seu tio e padrinho, Cilon Cunha Brum, um dos que foram desaparecidos, ou seja, assassinados, durante a campanha das Forças Armadas contra os que participaram da guerrilha que o Partido Comunista do Brasil tentou implantar na região do Araguaia, no começo dos anos 1970.

Logo na abertura do livro surge o tom de busca, uma busca vã, que vai percorrer todas as suas páginas: “Tio Cilon me acompanhou sempre. Pena que quando eu nasci ele desapareceu”.

Liniane conseguiu, em 260 páginas, erguer uma estrutura fragmentada, de equilíbrio tão ousado e incerto como a sua procura do tio que nunca conheceu, e armar um texto de pungente singeleza. Velhos recursos de estilo que são de um risco enorme – cartas ficcionais a um determinado personagem, no caso sua avó paterna morta anos antes – são conduzidos com uma habilidade surpreendente, ainda mais por se tratar de uma estreante.

O livro narra uma busca, a de um guerrilheiro que foi assassinado estando preso. Se a morte é sabida, se até a data da morte é sabida, qual é a busca? A verdade. Liniane quer saber onde foi enterrado, onde estão os restos de seus restos. Quer saber quem matou. Quem mandou matar, já se sabe: o mesmo major Curió que vive ao abrigo da impunidade assegurada pela Lei de Anistia imposta no crepúsculo do regime militar.

A autora quer saber isso e muito mais, e é desse mais que nasce a força do livro. Ela quer reconstruir a imagem diáfana do irmão de seu pai. Recuperar o som da voz, os gestos e jeitos, as palavras. Recuperar o que ela nunca viu, encontrar o homem que nunca conheceu.

Ao longo da narrativa, Liniane faz exatamente isso: narrar o pouco que conseguiu colher. Não interfere, não julga, não determina: apenas narra. E assim fala de um vazio que não está apenas na sua memória, mas na memória de um tempo, de um país. Ela reconstrói a vida do tio até o dia em que ele abandona tudo e vai se juntar à guerrilha no Araguaia.

A partir daí, o que restou dele são fiapos de lembranças esparsas, réstias de uma claridade tênue que não permite avistar mais que vultos difusos. Com uma estrutura refinada, de uma simplicidade impactante, como se fosse uma narrativa de ficção, o livro conta verdades dolorosas e a história de uma derrota, a da autora: depois de tudo, não é muito o que ela tem para revelar à avó morta.

O personagem do livro existiu. Foi fuzilado na mata, na época do Natal de 1973. No pequeno cemitério de São Sepé, cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul, há uma tumba vazia. Na tumba, uma placa: “Esta sepultura aguarda o corpo de Cilon Cunha Brum”.

Depois de fuzilado, Cilon foi abandonado na intempérie. Numa das cartas fictícias escritas para a avó, Liniane conta: “O seu filho Cilon não foi enterrado. Foi semeado. Deixado em cima da terra como grão que um dia vai germinar”.

Que pelo menos a memória desses tempos de breu germine, para que ele, o breu, nunca mais torne a acontecer.

 

Fonte – Valor

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