EUA sabiam o que ocorria na ditadura argentina, diz autor de documentário

Charlie Tuggle, professor da UNC, defende a abertura dos documentos da diplomacia norte-americana

A presidente da Argentina, Cristina Kirchner, entrega às Avós da Praça de Maio prêmio de direitos humanos, em dezembro de 2010

É difícil pensar em alguém que não conheça o movimento argentino das Avós da Praça de Maio. Há 35 anos, a organização investiga o paradeiro de cerca de 500 bebês que foram apropriados ilegalmente durante a ditadura militar no país. Pois as abuelas, que recentemente encontraram o 106º neto, passaram despercebidas entre muitas pessoas nos Estados Unidos. Pior: a própria história dos abusos cometidos pelo regime militar argentino é desconhecida entre os norte-americanos. É o que relata Charlie Tuggle, professor de jornalismo da UNC (Universidade da Carolina do Norte – Chapel Hill) e produtor do documentário “Las abuelas de Plaza de Mayo – A busca por identidade”, recém-lançado no país. Segundo Tuggle, a reação ao filme pode ser resumida numa frase: as pessoas simplesmente não sabiam do ocorrido. “Os norte-americanos têm uma ideia muito vaga sobre isso. Somos mal informados sobre o que aconteceu, como isso nos afetou e como estávamos envolvidos”, diz.

Produzido com a ajuda de três estudantes e das duas filhas de Tuggle – também jornalistas –, o documentário retoma as trajetórias de jovens que tiveram suas identidades resgatadas e também conta o “lado norte-americano” da história das abuelas. Em outras palavras, o jornalista ressalta o papel do diplomata Tex Harris para que o mundo soubesse o que acontecia na Argentina à época dos Anos de Chumbo.

Em entrevista a seguir, Tuggle defende a liberação dos documentos secretos sobre as ditaduras na América Latina por parte do governo norte-americano. “A única razão pela qual você bloqueia a divulgação de documentos é porque você não quer que as pessoas saibam o que eles revelam”, afirma.

Opera Mundi: Como surgiu a ideia de produzir o documentário?

Charlie Tuggle: Em 2002, conheci dois estudantes na universidade que participavam da bolsa Morehead [Morehead Cain Scholars Program]. Eles ouviram falar nos Anos de Chumbo pela primeira vez aqui, na UNC – isso porque eles eram considerados alunos brilhantes. Decidiram viajar à Argentina para fazer reportagens sobre o assunto e descobriram o grupo das Abuelas. Algum tempo depois, comecei a lecionar na Pontifícia Universidade Católica Argentina e fiquei mais interessado no país – e particularmente nesse grupo de senhoras. Passei a viajar nas férias para lá. Em 2009, minhas filhas pediram para participar do projeto. A mais jovem chegou a ganhar um prêmio nacional com uma reportagem sobre as abuelas. Já a filha mais velha achou que textos isolados não abordavam o assunto a fundo. Ela sugeriu: por que não fazemos um documentário em família sobre o assunto? E nós fizemos.

OM: Qual das histórias te impactou mais?

CT: A história de Alejandro Sandoval, que viveu a vida toda como filho de uma família que não era a dele, sem desconfiar disso. Porque para aqueles que sabiam que algo estava errado e já não gostavam dos pais adotivos, havia a sensação de estranhamento. Mas Alejandro tinha uma vida boa. Ele era tratado como filho, mas descobriu que tudo era mentira. É uma mudança monumental. Meu personagem favorito foi o pai que ficou exilado por cinco anos, passou a vida inteira procurando o filho e chegou a fingir que era um carteiro para vê-lo. No final, mesmo após ter encontrado o filho, ele diz: “não acho que é possível resgatar o tempo perdido”.

OM: Na sua opinião, por que na Argentina ocorreram movimentos tão expressivos como os da madres e das abuelas, mas outros países ainda penam para lidar com as memórias da ditadura militar?

CT: Quem explica isso são elas próprias, as madres e as abuelas. As madres ainda fazem passeatas semanais em frente à Casa Rosada. Essas são pessoas que colocaram as suas próprias vidas em risco. Algumas madres foram capturadas, torturadas e mortas. Trata-se de um grupo de mulheres fortes, sem poder político algum, e que decidiram não ficar caladas sobre o que estava acontecendo. É uma história sobre a qual todos nós podemos aprender.

OM: O documentário diz que os Anos de Chumbo começaram por conta de atos terroristas de grupos organizados. Qual é o conceito de terrorismo usado por vocês?

CT: O documentário nasceu a partir de uma extensa pesquisa sobre a história da Argentina. Estou convencido de que houve uma resistência armada. Aproximadamente duas mil pessoas estavam envolvidas em todo o país em grupos como o dos Monteneros e o Exército Revolucionário Popular (ERP). Podemos chamá-los de terroristas porque eles estavam tentando depor o governo, estavam armados e organizados. A questão central, para mim, é como você sai de dois mil terroristas armados para 30 mil pessoas capturadas, torturadas e assassinadas. Se houve terrorismo, e eu reconheço que houve, por que matar uma mosca com uma bigorna? Qual foi a resposta ao nível de ameaça? Foi muito além do que deveria ter sido.

Charlie Tuggle, professor de jornalismo UNC e produtor de documentário sobre as Avós da Praça de Maio

 

OM: O filme também aborda a mudança de política externa norte-americana com a entrada do ex-presidente Jimmy Carter. Como você vê a interferência dele na Argentina?

CT: Entre as décadas de 60 e 80, qualquer país considerado “anticomunista” era aliado dos EUA. Não importava muito o que era feito. Você podia sequestrar, torturar e assassinar seus próprios cidadãos, mas, se era anticomunista, era amigo dos EUA.

Era essa a política, e não só na Argentina, mas em todo o Hemisfério Sul (e há quem não queira que essa história venha a ser contada). Minha opinião é que o momento em que o governo norte-americano mais deu suporte aos direitos humanos aconteceu na administração de Jimmy Carter. O apoio nunca foi tão pronunciado como naquela época. Não me propus a fazer esse filme para transformar Carter em um herói, não me importo com isso. Mas qualquer que seja sua opinião sobre ele, é preciso admirar o fato de que ele se pronunciou a respeito dos direitos humanos.

OM: O que você quer dizer com a frase “há quem não queira que essa história venha a ser contada”?
CT:
Há um movimento em Washington para que os documentos dessa época sejam liberados, mas ele sempre é bloqueado. A única razão pela qual você bloqueia a divulgação de documentos é porque você não quer que as pessoas saibam o que eles revelam. Aqueles que foram abertos mostram que, no mínimo, sabíamos o que estava acontecendo e não fizemos nada a respeito. Muitas pessoas na Argentina dizem: “os EUA estavam por trás de tudo, treinaram os militares argentinos com técnicas de tortura”. Talvez, ainda não temos os documentos para provar isso. Mas, no mínimo, sabíamos que as pessoas estavam sendo torturadas e assassinadas, e não fizemos absolutamente nada.

OM: Como tem sido a reação dos norte-americanos ao documentário?
CT:
A reação tem sido: “uau, não tinha a menor ideia de que isso aconteceu”. As pessoas imaginam que isso poderia acontecer na África Subsaariana ou na Alemanha Nazista. Mas na Argentina, no Brasil, no Chile? As pessoas têm uma ideia muito vaga sobre isso. Somos mal informados sobre o que aconteceu, como isso nos afetou e como estávamos envolvidos. Espero que o documentário abra os olhos das pessoas para que elas pensem: “se o nosso governo sabia que isso estava acontecendo e não fez nada, precisamos mudar as pessoas que estão no governo”. Outra coisa é que temos uma cultura muito centrada no próprio país. Nossos cidadãos não estão interessados o suficiente no que acontece no resto do mundo –  apesar de que isso está mudando. Precisamos mudar o olhar para o mundo como cidadãos.

OM: Quais são os planos para o documentário no futuro?
CT:
Acabamos de traduzir o roteiro para o chinês. Temos estudantes chineses na universidade e eles sugeriram a tradução porque muitas pessoas na China sofreram e sofrem abusos de direitos humanos.

 

 

Fonte – Opera Mundi

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