Ex-mulher do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto pela ditadura em 1971, a cientista social comemora as primeiras decisões judiciais contra o major Ustra, e diz que esse tipo de violência ainda existe no Brasil
Julgar e condenar os agentes do Estado como responsáveis pela violência cometida durante a ditadura militar é um objetivo antigo de sobreviventes e familiares de vítimas do regime. Por décadas, porém, esse foi um sonho distante. A realidade, agora, parece mudar após duas decisões recentes da Justiça relativas ao major Brilhante Ustra, oficial que esteve à frente do Destacamento de Operações de Informações, o DOI-Codi, da ditadura, entre 1970 e 1974, e que se tornou conhecido pela frieza e crueldade com que comandava sessões de tortura. Em caso inédito no Brasil, o oficial foi condenado em primeira instância a indenizar os familiares do jornalista Luiz Eduardo Merlino por sua morte em 1971. Também foi mantida, em segunda instância, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a condenação do major pela tortura da família Teles, ocorrida em 1972. À frente da ação sobre o caso Merlino está sua ex-companheira e ex-militante do Partido Operário Comunista (POC), a cientista social Ângela Mendes de Almeida, 74 anos. A indenização é estimada em R$ 100 mil. “Não queremos esse dinheiro. Queremos que outros torturadores vejam que podem vir a pagar pelos crimes que cometeram”, afirma.
Istoé -Recentemente, em duas ações diferentes, a Justiça responsabilizou o major Ustra por abusos cometidos durante a ditadura. Por que é importante que haja a responsabilização pessoal e não do Estado?
Ângela Mendes de Almeida – Na maior parte dos casos, a opção por mover ações tendo como réu o Estado ocorreu porque não se conhecia o nome dos torturadores. Poucos estão identificados e um desses poucos é o coronel Brilhante Ustra, que era o comandante do DOI-Codi à época e não escondia isso de ninguém.
Istoé -Na ação de vocês, pela primeira vez um agente da ditadura é condenado a indenizar familiares de mortos pelo regime. Como foi a decisão de entrar com o processo?
Ângela Mendes de Almeida – Para nós, era terrível não poder fazer nada. Parecia que já se havia explicado a morte dele e não mais se falaria sobre isso. Decidimos entrar com a ação em 2007, tomando como exemplo o processo da família Teles, também contra o Ustra, e que foi agora referendado pelo TJ-SP. No caso deles, o casal, a cunhada e as crianças foram sequestrados, levados para o DOI-Codi e barbaramente torturados, em 1972, um ano após a morte do Merlino. Tentamos fazer o mesmo, mover uma ação declaratória (na qual seria declarada a responsabilidade dele, porém não haveria indenização), mas, diferentemente da família Teles, não deu certo conosco.
Istoé -Por que não deu certo com vocês?
Ângela Mendes de Almeida – Em 2008, os advogados do coronel Ustra propuseram ao Tribunal de Justiça um embargo à ação, alegando que o coronel estava coberto pela Lei da Anistia e que eu não tinha direito de entrar com o processo, pois não era formalmente casada com o Merlino. Esse embargo foi julgado e decidiu-se pela extinção do processo.
Istoé -Foi a partir daí que vocês decidiram pela ação indenizatória?
Ângela Mendes de Almeida – Sim. Nesse julgamento, os desembargadores sugeriram, não formalmente, que seria o caso de uma ação por danos morais. Sempre vacilamos em mover uma ação desse tipo porque não temos interesse no dinheiro. Mas não tínhamos alternativa. No Brasil, há uma interpretação da Lei da Anistia – e digo interpretação porque isso não aparece na própria lei – que impede que se movam processos criminais contra os torturadores. Por isso os processos que temos, como nos casos do Vladmir Herzog e do Manoel Fiel Filho, são processos na área cível, não na área criminal. Ganhamos a ação em primeira instância. O coronel, porém, recorreu e agora aguardamos o julgamento em segunda instância, sem data marcada.
Istoé -A decisão do TJ-SP sobre a família Teles dá mais segurança de que a condenação de Ustra no caso Merlino também será mantida?
Ângela Mendes de Almeida – No Poder Judiciário não existe 100% de certeza, mas a condenação em segunda instância no caso da família Teles é, certamente, um passo importante para o nosso processo.
Istoé -O advogado do coronel alegou, no caso Teles, que o correto seria a situação ser avaliada pela Comissão da Verdade. Qual a opinião da sra. sobre essa estratégia?
Ângela Mendes de Almeida – Isso é uma bobagem que não tem tamanho. Se a Comissão da Verdade investigar os casos em que o Ustra foi um ator preponderante, isso só vai piorar a situação dele. É uma coisa sem nexo. Não é o Ustra quem vai se valer dos resultados da comissão.
Istoé -Só a ação cível é pouco?
Ângela Mendes de Almeida – Sim. Nós gostaríamos que esses torturadores fossem identificados e julgados pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos. Ninguém está pedindo para torturar os torturadores. Nós queremos que os casos sejam investigados e sejam aplicadas a eles as leis que se aplicam a todas as pessoas que cometem esses crimes.
Istoé -A sra. conhece outras famílias que estão tentando mover ações contra torturadores do regime militar?
Ângela Mendes de Almeida – Famílias, se existem, a gente não conhece, mas há algumas iniciativas do Ministério Público.
Istoé -Como a família soube da morte de Merlino?
Ângela Mendes de Almeida – Tudo indicava que ele seria mais um desaparecido do regime militar. No atestado de óbito, diz-se que ele havia sido levado para uma reconstituição de cena no Rio Grande do Sul, fugido e se suicidado sob um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga (SP). A família não foi avisada de nada. Por sorte, o Adalberto, marido da Regina, irmã do Merlino, era delegado de polícia e recebeu um telefonema avisando sobre a morte. A família, que vivia em Santos, veio então a São Paulo e foi ao Instituto Médico Legal. Lá, o diretor disse que não havia nenhum corpo com esse nome. Por ser delegado, o Adalberto conseguiu entrar pelos fundos e foi abrindo porta por porta das geladeiras até que em uma delas ele encontrou o cadáver com sinais evidentes de tortura. Só então o corpo foi entregue à família, em um caixão lacrado. Adalberto foi o único familiar a ver o Merlino morto.
Istoé -Como vocês descobriram o que de fato ocorreu?
Ângela Mendes de Almeida – A partir da audição de sete testemunhas foi possível reconstituir diversos momentos que fechavam uma história sobre o que ocorreu. Merlino foi preso no dia 15 de julho de 1971 e, segundo as testemunhas, torturado no pau de arara, tendo, em seguida, recebido choques elétricos por quase 24 horas. A partir daí ele foi jogado em uma solitária e depois retirado, pois estava com as pernas gangrenando. No testemunho do Otacílio Cecchini, outro militante do POC, ele diz que estava em uma sala com o major Ustra quando o militar recebeu um telefonema do hospital. Na conversa, perguntavam ao comandante se era para consultar a família do preso porque, para salvá-lo, seria preciso amputar suas duas pernas. E o major Ustra respondeu para não avisar a família, ou seja, ele decidiu pela morte do Merlino.
Istoé -A sra. encontrou o major Ustra durante o julgamento?
Ângela Mendes de Almeida – Não, nunca o encontrei pessoalmente. O réu não é obrigado a comparecer e ele não compareceu.
Istoé -A sra. sabe quem entregou o nome de Merlino aos militares?
Ângela Mendes de Almeida – Sei, mas eu procurei esquecer, porque tenho certeza de que a pessoa falou isso também sob tortura. Era um militante sem nenhuma importância dentro do POC e que, por um acaso, sabia o nome do Merlino.
Istoé -A morte dele foi uma surpresa?
Ângela Mendes de Almeida – Sim. Ele havia trabalhado na “Folha da Tarde”, não estava na clandestinidade e muita gente que o conhecia nem imaginava que ele militava. Também havia o fato de que o POC não era uma organização visada, pois não fazíamos ações armadas mais ostensivas. Foi uma surpresa para todos.
Istoé -A sra. considera que a atuação da presidenta Dilma Rousseff na elucidação dos crimes cometidos na ditadura tem sido satisfatória?
Ângela Mendes de Almeida – Não. Ela está muito aquém do que deveria. Houve um pequeno avanço quando ela proibiu os quartéis de comemorar a data do golpe militar, porém ela poderia ter feito mais. E, de uma forma particular, acho que ela não tem demonstrado nenhuma sensibilidade com a tortura que acontece nos dias de hoje. A ONU tem incentivado um protocolo que permitirá a grupos de pessoas entrar em locais onde há tortura, sem pré-aviso, para poder detectar e dificultar a tortura. A Dilma deveria ser a primeira a abraçar essa proposta, mas tem feito justamente o contrário e dificultado o trâmite.
Istoé -A Comissão da Verdade, do modo como funciona, é um avanço?
Ângela Mendes de Almeida – Tenho bastante preocupação com a comissão. Quando ela foi formada, analisaram-se as emendas do DEM e do PSDB, mas não se deu nenhuma atenção às propostas dos familiares de mortos e desaparecidos.
Istoé -Que propostas são essas?
Ângela Mendes de Almeida – Um exemplo é o período definido para a atuação da comissão, de 1946 a 1988. Ninguém entende por que essa definição. Esse período é um absurdo. Por que 1946? Deveríamos então retornar até 1937, que é o período da ditadura varguista. Ou, ainda mais sensato, estabelecer que as investigações fossem a partir de 1964. Só que o Exército não queria essa menção direta ao golpe militar, pois eles queriam que a Comissão da Verdade estudasse os crimes da ditadura e os crimes da esquerda. Só que os crimes da esquerda não foram cometidos por agentes do Estado.
Istoé -Por que fazer a diferenciação entre os crimes dos militares e os da esquerda?
Ângela Mendes de Almeida – As pessoas têm de pôr na cabeça que crime de lesa-humanidade é aquele cometido por agentes do Estado. Vamos abandonar a questão de que morreram pessoas dos dois lados, tanto militares quanto militantes de esquerda. Não é essa a questão. A questão são os crimes cometidos em nome do Estado.
Istoé -Por que julgar os torturadores é importante?
Ângela Mendes de Almeida – Além de fazer justiça a nós, familiares, a punição dos torturadores serve para a sociedade entender que a tortura é um crime. Ainda torturamos, só que hoje quem pratica essa violência é a polícia e o foco não são mais os militantes políticos, mas, sobretudo, os pobres. Só punindo os torturadores a tortura acaba.
Istoé -O Brasil é um país tolerante à tortura?
Ângela Mendes de Almeida – Sim, e não vem só da ditadura, vem da escravidão. Os castigos públicos estão inseridos na mentalidade brasileira. A sociedade precisa entender que os policiais são funcionários públicos e não têm o direito de torturar e matar, mesmo que estejam diante de criminosos. A ditadura acabou, mas o terrorismo de Estado não, porque a polícia continua torturando e matando.
Fonte – Isto é