Protesto expõe acusado de tortura durante a ditadura militar em São Paulo

A região da Brigadeiro Luís Antônio, uma das principais avenidas de São Paulo, amanheceu, neste sábado (20), com centenas de cartazes de protesto contra Homero César Machado, militar reformado acusado de ter comandado sessões de tortura contra presos políticos durante a ditadura militar como parte da Oban (Operação Bandeirante).

Criada após o Ato Institucional número 5 (AI-5), a Oban reuniu a repressão política estadual e federal em um único grupo. Posteriormente, a experiência deu origem aos DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informação dos Centros de Operações de Defesa Interna), na década de 70, que foram locais de tortura e assassinatos de opositores ao regime.

Parte dos cartazes traz o endereço do ex-capitão do Exército, que mora em uma das ruas da região. Coincidentemente, o centro de operações da Oban ficava na rua Tutoia, a algumas quadras da residência de Homero. Este blog tentou contato telefônico com o militar, mas não obteve sucesso.

Quem assumiu a autoria da ação foi a Frente de Esculacho Popular. O grupo, que afirma não estar ligado a nenhum sindicato, partido político ou entidade, diz ser formado por pessoas preocupadas com o direito à Verdade e à Justiça em relação aos crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar.

O Ministério Público Federal de São Paulo havia ajuizado uma ação civil contra Homero e outros três militares por conta de mortes e desaparecimentos de, ao menos, seis pessoas e a tortura de outras duas dezenas. A opção pela ação civil se deu por conta da Lei da Anistia impossibilitar um processo penal contra os torturadores. Em outubro do ano passado, contudo, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região decidiu, de forma unânime, que os crimes de que eram acusados já haviam prescrito. A Frente de Esculacho afirma que, se não houver justiça e punição, haverá esculacho público.

O tenente-coronel reformado Maurício Lopes Lima, que foi apontado pelo MPF como um dos responsáveis pela tortura de Dilma Rousseff, era outro dos acusados pelo MPF. “Estella”, codinome adotado pela presidente durante a militância contra a ditadura, foi presa por conta de sua atuação na VAR-Palmares (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).

Os manifestantes também colaram cartazes lembrando a morte de Virgílio Gomes da Silva, considerado uma das lideranças do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em 1969. O rapto foi retratado no filme “O que é Isso, Companheiro?”, parcialmente baseado no livro homônimo do ex-deputadp federal Fernando Gabeira, que também participou da ação.

No dia 7 de abril deste ano, a Frente de Esculacho Popular fez um ato semelhante contra Harry Shibata, médico legista e ex-diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo. Ele é acusado de ser responsável por falsos atestados de óbito usados para acobertar assassinatos de opositores pela ditadura militar. Entre eles, o de Vladimir Herzog, então diretor da TV Cultura, que fora convocado para “prestar esclarecimentos” no DOI-Codi, em outubro de 1975. A morte do jornalista após sessão de tortura tornou-se um símbolo na luta contra a ditadura.

Manifestação – Cerca de 80 pessoas realizaram um ato na frente do prédio em que fica o apartamento de Homero, na rua Manoel da Nóbrega, no começo da tarde deste sábado. Os manifestantes da Frente de Esculacho Popular marcharam da esquina da avenida Paulista com a Brigadeiro Luís Antônio até o prédio, depositando uma coroa de flores na fachada. Uma fanfarra animou o ato, que também contou com uma encenação de um grupo de teatro.

Alguns moradores desceram dos prédios e se disseram surpresos com as denúncias. Um panfleto foi distribuído aos que passavam pelo local, exigindo que Homero seja intimado para depor na Comissão da Verdade. A Comissão foi criada para esclarecer quem foram os responsáveis por mortes, torturas e desaparecimentos na ditadura, mas sem poder de punição.

No ato, ocorrido nesta manhã, o filho de Virgílio fez um fala emocionada, acusando o militar reformado pelo assassinato de seu pai através de um megafone.

Os manifestantes defenderam que a tortura e os assassinatos praticados durante a ditadura militar permaneceram como prática institucional do Estado. E a impunidade dos crimes praticados pelo Estado no passado funcionou como uma “carta branca” para que as forças policiais e as Forças Armadas utilizem os mesmos métodos hoje.

O coronel Paulo Telhada, ex-comandante da Rota e quinto vereador mais votado nas eleições municipais de São Paulo, foi citado como exemplo disso por alguns manifestantes. Telhada incitou seus seguidores no Facebook contra o repórter André Caramante, da Folha de S.Paulo, por conta da reportagem “Ex-chefe da Rota vira político e prega a violência no Facebook”. As postagens na rede social levaram o Ministério Público Eleitoral a pedir a impugnação de sua candidatura. Caramante foi obrigado a se exilar fora do país.

Frei Tito – Outro caso de tortura lembrado nos cartazes deste sábado e que teria Homero entre os responsáveis foi a de Tito de Alencar Lima, o Frei Tito. O religioso dominicano viria a cometer suicídio, na França, anos depois por conta das consequências da tortura. Trago um trecho do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte da ação movida pelo MPF:

“Na quarta feira, fui acordado às 8 horas, subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava. Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, ou recebia cuteladas na cabeça, nos braços e no peito. Neste ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas. (…) Na 5a feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas perguntas. “Vai ter que falar, senão, só sai morto daqui”, gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase uma certeza. Sentaram-me na “cadeira de dragão” (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse “antes de morrer”. Não chegaram a fazê-lo. Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado. Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos.”

Este blog solicitou ao também frei dominicano e membro da Comissão Pastoral da Terra no Tocantins, Xavier Plassat, última pessoa a ver Tito com vida antes do suicídio, um relato sobre as consequências da tortura sobre o religioso.

“Convivi com frei Tito na comunidade dominicana de L’Arbresle (França). Foram duas primaveras, dois verões, mas um só outono e um só inverno. Ele com seus 27 anos e eu, meus 23. Ali, surgiu entre nós uma relação feita de cumplicidade e de amizade, de sorrisos e de raivas, de luta e de fé, enfrentando o Fleury [Sérgio Fernando Paranhos Fleury, delegado em São Paulo, acusado de ser um dos principais torturadores do regime militar] que, por dentro do Tito, continuava sua tortura destruidora, partindo-lhe a alma entre resistência e desistência. Resistência era quando Tito formava projetos, tocava violão, abraçava o amigo, brincava com a criança, rezava, sorria. Desistência era quando obedecia cegamente à intimação alucinante da voz que atormentava sua mente sem parar, fugindo para onde mandava que fosse, ou afundando-se em impenetráveis prantos ou desesperados silêncios.

Lembro como se fosse ontem: o dia era 11 de setembro de 1973. As rádios anunciavam o golpe de Pinochet. Ao chegar de longa viagem, achei Tito prostrado e gemendo ao pé de uma árvore, no estacionamento frente à portaria de La Corbusière, nosso convento. Assim estava desde cedo. Ninguém entendia seu choramingo incessante e assustador. Sentei e fiquei ao lado, horas a fio, procurando abrigar o amigo da chuva intermitente. Pelas altas horas da noite, a duras custas, incrédulo, eu comecei a perceber do que Tito tremia e a quem implorava por piedade: era o Fleury, vociferando em (imaginário) alto-falante localizado do outro lado do vale. Enquanto torturava um após o outro cada um dos seus irmãos, ele bradava insultos contra o Tito: “comunista, traidor, terrorista, a igreja te jogou fora, você não pisará mais neste chão sagrado, não há mais como tu escapar de mim”. Enquanto não se entregasse, continuaria a tortura da família por inteiro: os dez irmãos, o pai, a mãe. E Tito, o caçula, escutava soluços dos seus, entre gritos e imprecações.

Desse dia em diante, Tito pendularia entre o entregar-se e o resistir, como que acuado entre as paredes deste novo “corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se a louca promessa que recebeu durante as sessões reais de tortura. Em suas próprias palavras, em depoimento: “Quiseram-me deixar dependurado toda a noite no “pau-de-arara”. Mas o capitão Albernaz objetou: “Não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”.

Juntos, viajamos, cantamos, choramos, xingamos e desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vá. Até que um dia (era em agosto de 1974, na semana de São Domingos), Tito resolvesse livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe. Neste instante longamente preparado, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.

“Melhor morrer que perder a vida. Opção 1: corda (suicídio, Vejube). Opção 2: tortura prolongada, Bacuri”, foram umas das últimas palavras que rabiscou no papel.Entendi assim: minha vida, ninguém tira, é minha. Eu a estou entregando. Prova de amor, maior não há. Se os discípulos se calarem, as próprias pedras gritarão.”

 

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