Maria Célia Lundberg, 68, dava aulas de alfabetização para pessoas carentes em Sabará (MG) e era militante da ALN (Aliança Libertadora Nacional) quando foi presa, em 1971.
Sem nunca ter pego em armas, foi torturada e violentada por cinco dias e libertada sob ameaças. Acabou fugindo para o Chile e, depois, para a Suécia, onde vive desde 1973.No início de outubro, voltou ao Brasil para participar da 62ª edição das Caravanas da Anistia, promovida pelo Ministério da Justiça. A comissão concedeu a ela indenização e pensão vitalícia pelas torturas no Dops, em Minas Gerais.
“Difícil descrever o que senti nos últimos dias antes de chegar aqui. É uma ferida profunda.
O que mais fiz nesta vida foi tentar esquecer coisas que me deixaram marcas. Não apenas no corpo, mas na alma. Os anos de estudo foram deixados para trás.
Trabalhava dando aulas de alfabetização para pessoas pobres. Alfabetizava e conscientizava o povo brasileiro utilizando o método do professor Paulo Freire.
Era da ALN (Aliança Libertadora Nacional), mas nunca peguei em armas.
Acho que me prenderam porque, dias antes da prisão, em 7 de janeiro de 1971, houve um assalto em Minas Gerais e atribuíram à ALN. Invadiram a minha casa e encontraram no chão papéis da organização.
Me levaram. Fui violentada e torturada durante cinco dias. Além da dor física eu tinha outra certeza: estava só.
Eu era a única mulher ali. Sozinha em um cela.
Ouvia gritos quando era tirada de minha cela para a sala de trabalho dos policiais.
Ouvia meu irmão [Hervê] gritando enquanto sofria maus-tratos. Às vezes, nos encontrávamos no corredor enquanto eu era retirada de minha cela. Era a certeza de que ele estava vivo. Nos falávamos através do olhar.
A angústia da prisão me fez pensar em suicídio. Vou me matar e acabar com tudo. Pensei isso várias vezes. Depois pensava que não podia dar a eles o argumento que queriam. Era dar força a eles.
Depois desses dias presa no Dops, saí totalmente destruída.
Só me disseram que, se comentasse algo na rua, o meu irmão, que era mantido preso, seria morto.
Os abusos resultaram numa gravidez. Veio a seguir um aborto espontâneo.
Depois que meu irmão deixou a prisão só me restou fugir para o Chile, em 1972, onde conheci o meu companheiro e, em 1973, fui para a Suécia.
Lembro-me quando um médico sueco disse-me na chegada ao seu país, durante um exame, que nunca poderia ter um filho por causa da violência que sofri enquanto estive presa.
Deus existe. Tive dois filhos e hoje sou até avó de uma neta. Ou seja, de muitas formas tenho uma vida realizada na Suécia. Sinto até que pude fechar o capítulo da tortura com o qual sofri.
Hoje tenho o reconhecimento do Estado através da insistência da minha família e de meus amigos. Mas que fique claro que nenhuma indenização pode ressarcir o mal que o terrorismo fez a mim.
Esses terroristas nunca precisaram ser julgados. Muitos desses criminosos foram promovidos e até hoje continuam com suas regalias.
Espero que nunca mais a tortura física ou psíquica seja aplicada contra qualquer grupo ou pessoa.
Defendo a punição dessas pessoas. Agora, elas nunca devem ser punidas com a mesma moeda.
Pena meus pais não estarem vivos para acompanhar este momento. É bom voltar a pisar esse país sem o risco de ser torturada ou presa.
Sempre tive medo de voltar ao Brasil.
Vim em 2009 para sepultar a minha mãe. Ela foi sepultada e logo depois eu voltava para a Suécia.
A Suécia cuidou dos meus problemas físicos, mas nunca pude ter um bom tratamento sobre as minhas torturas psíquicas.
A única coisa que sempre quis foi voltar ao Brasil. Meus filhos falam “incluso” [inclusive] português. Mas nunca apareceram aqui porque temiam represália contra mim.
Sentia saudades de tudo. Da terra, do cheiro.
Agora penso em voltar e morrer no Brasil.”
Fonte – Folha.com