Por mais de dez anos, até a data em que morreram, Jayme e Alice de Freitas nem sequer trocaram a fechadura da porta do apartamento onde viviam, em Belo Horizonte, esperando que um dia o filho caçula entrasse pela porta. Mas Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto, comandante da VAR-Palmares e dirigente na época em que a presidente Dilma Rousseff ali militava, nunca retornou. Desaparecido desde 15 de fevereiro de 1971 no Rio, até hoje nenhuma instituição militar assumiu a prisão de Beto. A primeira pista oficial sobre ele foi localizada pelo jornal em documento da ASP/SNI, guardado no Arquivo Nacional e inédito até hoje. Possivelmente Beto foi executado pela repressão dois meses após a prisão: 15 de abril de 1971, no então Estado da Guanabara. O documento, intitulado “Informação Nº 4.057”, de 11 de setembro de 1975, lista 165 nomes, seguidos por datas e nomes de Estados. Tudo indica que as datas apontam quando o preso morreu. Em 89 dos 165 nomes as datas e os locais citados são oficialmente reconhecidos como sendo os da morte do militante; 23 deles não constam da lista oficial de mortos e desaparecidos – podem ser codinomes ou nomes frios. Há 41 pessoas cujas informações sobre a provável data da morte divergem das oficiais; oito não estão associada a uma data, e quatro foram dadas como mortas erroneamente na época em que o documento foi elaborado. “É uma lista de mortos”, disse Suzana Lisbôa, ex-integrante da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos e responsável pela maioria dos processos de desaparecidos, ao verificar o documento. Além de Beto, são apontadas datas das possíveis mortes de outros 11 guerrilheiros considerados desaparecidos. Entre eles, Aylton Adalberto Mortati, Ísis Dias de Oliveira, Ruy Carlos Vieira Berbert e Stuart Edgard Angel Jones. Também constam do documento os nomes de Aluísio Palhano, Antônio Joaquim Machado, Celso Gilberto de Oliveira, Heleny Telles Guariba, Mariano Joaquim da Silva, Paulo de Tarso Celestino e Rubens Beyrodt Paiva -o MPF investiga se essas pessoas teriam passado pela Casa da Morte de Petrópolis, centro clandestino de torturas mantido pelo CIE na região serrana do Rio. Até agora as poucas informações tanto sobre o destino de Beto quanto dos outros guerrilheiros possivelmente desaparecidos na Casa da Morte vinham do depoimento de Inês Etienne Romeu. Ela foi a única sobrevivente do centro de torturas. Inês conta que, quando esteve presa no local -durante 96 dias- foi informada por seus torturadores que Beto havia sido executado naquela casa. A dirigente da VPR também viu e conversou com Mariano Joaquim da Silva, ouviu as torturas a que foram submetidos Aluísio Palhano, Heleny Telles Guariba e Paulo de Tarso Celestino. Os torturadores disseram a ela que Rubens Paiva também esteve naquele local e que não pretendiam matá-lo, mas que ele não resistira às torturas. O ofício localizado pelo jornal com a provável data da morte de Beto também cita um companheiro de militância preso com ele: Antônio Joaquim Machado. É a primeira vez que um documento com a possível data da morte de Machado é tornado público: 12 de abril de 1971, três dias antes de Beto. Publicado no caderno ‘Poder’, da Folha.
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Continuação de matéria da Folha. O coordenador da Comissão Nacional da Verdade, Cláudio Fontelles, considerou “importantíssimo” o documento localizado pelo jornal e afirmou que o ofício pode ajudar tanto na investigação dos casos de desaparecidos quanto na construção do relatório a ser apresentado ao final dos trabalhos da CNV. “É como se dissesse ‘olha essa pessoa, agora tem um documento oficial que diz que a data é esta’. Aqui já tem uma luz bem clara, mas que necessita de confirmação.” Na avaliação de Rosa Cardoso, também membro da CNV, a lista demonstra que havia um trabalho sistemático e organizado dos agentes da repressão a respeito de nomes e datas de morte de militantes contra a ditadura. “Essa precisão de datas de mortes mostra que eles sabem o que aconteceu e que isso foi divulgado para um certo número de militares que trabalhavam nos organismos de segurança. Eles devem ter esse tipo de registro até hoje em algum lugar”, disse. Primo de Beto, o intérprete Sérgio Ferreira investiga seu desaparecimento desde os anos 1970. De acordo com Ferreira, à época a família foi a Brasília, contratou advogados, buscou por Beto em todas as instituições militares. Mas nunca foram encontrados documentos oficiais de sua prisão. Para Ferreira, a data apontada no documento localizado pelo jornal é coerente com um relatório da Anistia Internacional de 1974, que fazia referência à morte de Beto em 04/1971. “Acho muito possível por ser exatamente dois meses depois da prisão. É muito provável que eles o tenham mantido porque Beto teve uma militância longa, conhecia muita gente”, disse Ferreira.
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Coluna de Ancelmo Góis, em O Globo. A Comissão da Verdade abriu uma linha de investigação contra aqueles médicos legistas que forjaram laudos falsos para encobrir mortes sob tortura nos porões da ditadura. O caso mais notório é, como se sabe, o do médico Harry Shibata, que escreveu os laudos de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho. Veja só. Um dos laudos que chegou à comissão, de um médico pouco conhecido, é tão mal feito que pode, quem sabe, ter sido escrito assim de propósito, sem nexo técnico, para um dia ser desmascarado e, enfim, revelar um crime da ditadura.
Paulo Abrão