Em dezembro de 2012, na 18ª edição do Prêmio Direitos Humanos 2012, promovido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, o Levante Popular da Juventude foi o escolhido na categoria de Menção Honrosa. Está explicado no site oficial que este “prêmio consiste na mais alta condecoração do governo brasileiro a pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvam ações de destaque na área dos Direitos Humanos”.
A homenagem ao Levante foi em razão da série de esculachos (ou escrachos) que esse coletivo organizou contra torturadores e agentes da repressão da ditadura militar (1964-1985) por diversos estados do Brasil. Outros grupos, como a Frente pelo Esculacho Popular, também têm promovido ações dessa natureza. Os participantes desses movimentos se reúnem para denunciar e expor publicamente, sobretudo aos vizinhos, a participação dos torturadores da ditadura militar que não foram processados por seus crimes pelo sistema de justiça e que até hoje estão impunes.
Essas manifestações acontecem há mais tempo no Chile e na Argentina, mas foram interrompidas a partir do momento em que o Poder Judiciário passou a processar penalmente os criminosos das ditaduras. E isso não se deve ao acaso, pois o escracho se coloca, justamente, como um sintoma da incapacidade das instituições do Estado em corresponderem às exigências éticas de uma sociedade que não mais se cala diante das graves violações aos direitos humanos.
Em maio de 2012, o Levante promoveu o esculacho de um torturador apontado como um dos responsáveis pelo desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva. Marcelo Rubens Paiva, filho desse desaparecido político, escreveu um texto sobre os escrachos (http://blogs.estadao.com.br/marcelo-rubens-paiva/valeu/). O título é “Valeu” e começa:“Sensação estranha essa. O que você faria se soubesse do endereço do militar responsável pela tortura e morte do seu pai? E que ele circula pelo bairro livremente? E termina: “Bacana. Criativo. Justo. Obrigado, garotada. A família agradece”.
Criatividade e justiça dão o tom e o sentido do Levante e dos outros movimentos similares. O mote central que inspira essa forma de ação política é a omissão do Estado brasileira em fazer justiça e revelar a verdade sobre os acontecimentos mais violentos da ditadura. Por isso, enquanto os que cometeram os crimes mais bárbaros durante esse período não respondem judicialmente pelos seus atos, o Levante se organiza para apontar à comunidade que ali naquela rua, naquele bairro, vive (tranquilamente?!) alguém que torturou, matou ou fez pessoas desaparecerem. É um recurso extremo, mas democrático e legítimo, especialmente porque rompe com a cultura do silêncio e do esquecimento.
O mais interessante é que não há nenhum tipo de confronto físico ou de violência, elementos que poderiam desqualificar essas ações perante a sociedade, ao reduzi-las ao mero revanchismo. Na verdade, essas manifestações pacíficas e simbólicas, que articulam muito bem política e estética, são pressões na luta pela construção de uma memória democrática e comprometida com os direitos humanos.
Por um lado, os escrachos buscam visibilizar aqueles que historicamente vêm se escondendo sob a proteção de leis e instituições herdadas da própria ditadura, como a Lei de Anistia; por outro, essas ações são formas de restituir às vítimas o devido reconhecimento a que têm direito, acolhendo socialmente suas dores e chamando a atenção de setores da sociedade que não guardam relação direta com essa temática. Essas ações são também educativas/esclarecedoras para uma grande parcela da população brasileira que sequer sabe (ou quer saber) o que aconteceu no passado tão recente.
No contraponto entre indiferença e ações como a do Levante, nota-se que a verdade sobre os acontecimentos mais nefastos da nossa ditadura vem ganhando, a cada dia, mais força. Do ponto de vista jurídico, a verdade tem sido tratada como um direito coletivo, que pode ser exercido inclusive pelos que nem eram nascidos no tempo em que a violência fora cometida. E isso é bem claro quando Marcelo Rubens Paiva afirma ser justo que outros, os do Levante, revelem o que foi feito a seu pai e à sua família, porque esses crimes importam (ou deveriam importar) à sociedade.
Esse tipo de responsabilização social e histórica é, do ponto de vista cultural, importantíssima para a efetiva democratização do nosso Estado e da nossa sociedade civil. Mas torcemos para que esse papel que o escracho cumpriu em 2012 seja cada vez menos necessário, com a esperança de que, em 2013, o Brasil cumpra seus deveres internacionais de processar criminalmente os responsáveis pelos crimes da ditadura de 1964, deveres estes bem explicitados na decisão do “Caso Araguaia”, proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Se a Justiça e o Estado de Direito se mostrarem, nesse novo ano, comprometidos com o aprofundamento da democracia brasileira, esses movimentos poderão assumir outras tarefas ainda pendentes da nossa democracia. E são tantas tarefas, que nem arriscamos apontar algumas…
Inês Virginia Prado Soares é doutora em Direito pela PUC/SP, Procuradora Regional da República e membro do IDEJUST (Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição).
Renan Honório Quinalha é doutorando em Relações Internacionais pela USP, assessor da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva” e também membro do IDEJUST.