A crise da social-democracia é também uma crise da democracia como valor universal

De uma forma simples, mas nem por isso menos verdadeira, pode-se dizer que a social-democracia europeia, em geral, e a social-democracia portuguesa, em particular, foi construída com base numa imensa dívida pública com o sistema financeiro privado, que agora cobra a sua conta. Uma social-democracia “sem fundos”, portanto, ou melhor, uma social-democracia de subsídios ilusórios, que se transformou num imenso escombro de direitos.

O sistema fiscal que acompanhou este modelo não dotou os estados de recursos para cumprir as obrigações financeiras decorrentes dos direitos conquistados pelas classes trabalhadoras no pós-guerra, mas dotou-os de mecanismos suficientemente ágeis para ressarcir o sistema financeiro privado, através de recursos originários do sector público, quando chegasse a hora da “cobrança”.

Socializa-se, agora, as perdas, com o sucateamento das pequenas e médias empresas e com o arrocho – na forma de preços elevados e salários baixos – das classes médias e trabalhadoras, ao mesmo tempo que o estado refinancia os conglomerados financeiros globais, que, por seu turno, controlam as grandes empresas privadas globais. A tese central é que só eles podem “alavancar” a retomada do crescimento.

Porquê “isso ocorre assim”? Sustento a hipótese de que a liderança do processo de acumulação privada, que hoje se transforma em “capital-dinheiro” (ou seja, sinais eletrónicos que constituem a riqueza virtual privada) transforma-se, também, em hegemonia política total. Hegemonia exercida sobre a ampla maioria dos atores políticos, que sempre reproduzem – direta ou indiretamente – que não há nada além deste horizonte da globalização: não há outro caminho. A dívida dos estados transformou-se em valor político agregado sobre os partidos.

Todas as premissas que servem ao “caminho único” são falsas, pois as formas políticas e institucionais que acompanham a globalização e, em consequência, a integração europeia, são escolhas políticas que orientam um “modo” de globalizar-se, que tem efeitos distintos sobre as economias nacionais. Existem, sim, economias nacionais de riquezas reais, que não são meros sinais eletrónicos: economias nacionais, através das quais as pessoas compram comidas, roupas, pagam seus aluguéis e compram suas residências e também sofrem – individual ou coletivamente – o “modo” de globalizar-se de maneira diferenciada. É possível dizer que Grécia e Portugal, por exemplo, “sofrem” uma globalização orientada pelo padrão alemão, cuja economia, nacional e multinacional, funciona de maneira uniforme e regular e não para de fortalecer-se.

Na formação da União Europeia, tal qual ela está constituída, não houve uma intervenção unitária do velho sujeito “classes trabalhadoras”, para moldá-la segundo uma visão social-democrata. De uma parte, porque a integração europeia refletia e reflete diferentes efeitos nos vários ramos de trabalhadores e públicos privados e os efeitos diferentes fragmentaram sua ação política: ela foi um festival de demandas corporativas que não traduziram um projeto de União Europeia a partir dos interesses dos “de baixo”. De outra parte, a social-democracia (vencedora no pós-guerra) criou a ficção, para seu consumo interno (e convenceu a sua base social), que a globalização concreta – jurídica, fiscal, política e institucional – no continente europeu, em si mesma, já era um avanço extraordinário.

Na verdade, a lógica da “acumulação privada”, via capital financeiro, não é a mesma lógica da “acumulação pública”. A primeira é construída através de um sistema institucional e fiscal que reforça o papel dos bancos privados e neutraliza, gradativamente, o sistema de financiamento estatal; a lógica da boa acumulação pública, porém, só é garantida por um sistema fiscal capaz de municiar o estado de recursos para estabilizar o crescimento, com previsão para responder as conquistas de seguridade e proteção social, com dívida pública decrescente ou estável.

A essência do Estado social de direito, que vem da boa e velha Constituição de Weimar, é a acumulação pública ser mais forte e consistente do que a acumulação privada, que se aliena ao capital financeiro. Se a acumulação privada é privilegiada em detrimento do fortalecimento das funções públicas do estado, o sector financeiro privado passa a controlar o próprio estado, transformando-o em sucursal da sua lógica perversa. Neste caso, o estado perde a sua autonomia relativa e passa um mero conduto do ajuste para pagamento da dívida.

O maior problema de todos, porém, é que tudo foi construído dentro da democracia, com mecanismos jurídicos e políticos legitimados por eleições livres, cujo resultado abala a fiança do valor universal da democracia. Não é nestes momentos que a hidra totalitária tem condições de, enganosamente, resgatar a esperança? Uma grande concertação política das forças democráticas, que não aceitam a captura da democracia e do estado pelo capital financeiro, pode salvar mais do que a União Europeia nesta crise: salvar o legado democrático da modernidade que está sendo esvaziado pela tecnocracia financeira dos bancos centrais, erigidos em última instância política dos estados.

Por Tarso Genro – Advogado e governador do Rio Grande do Sul, Brasil. Filiado no Partido dos Trabalhadores, foi ministro da Educação, das Relações Institucionais do Brasil e da Justiça, nos Governos de Lula da Silva

 

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