A biografia “Rubens Paiva”, de Jason Tércio, com lançamento previsto para este ano, será o 67º volume da série “Perfis Parlamentares”, da Câmara dos Deputados.
O livro narra a vida política do ex-deputado federal pelo PTB, como sua posse na Câmara, em 1963, sua atuação na CPI do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), sobre financiamento ilegal de campanhas com dinheiro dos Estados Unidos, e a cassação de seu mandato pelo Ato Institucional nº 1, em 1964.A publicação narra a série de eventos que levaram à detenção de Paiva e trará ainda a reprodução de documentos como o Informe nº 70 do DOI-Codi do Rio, que menciona sua prisão por agentes da Aeronáutica.
Pesquisador do caso Rubens Paiva desde 2006, Tércio lançou, entre outros livros,“Segredo de Estado — O Desaparecimento de Rubens Paiva” (Objetiva, 2011).
Fonte – Folha de S.Paulo
No livro “Segredo de Estado”, o jornalista Jason Tércio reconstitui o desaparecimento de Rubens Paiva, um dos casos mais controversos ocorridos durante o regime militar.
Em 1971, a casa do ex-deputado, no Rio de Janeiro, foi invadida por agentes do serviço secreto do governo militar. Segundo os policiais, seria apenas um depoimento de rotina. No entanto, Paiva nunca mais voltou. O corpo até hoje não foi encontrado.
Ainda neste ano, Tércio publicará a biografia “Rubens Paiva”, 67º volume da série “Perfis Parlamentares”, da Câmara dos Deputados.
Abaixo, leia um trecho que descreve os momentos que antecederam a captura Paiva, quando os agentes estavam de campana na porta de sua residência.
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Sentado ao lado do motorista no Opala, o capitão Abelha, de óculos escuros, acende mais um cigarro espreitando a casa na esquina.
“É ele” diz para Chacal, no volante. Leão no banco traseiro se inclina e coloca a cabeça entre os dois. “E agora, o que que a gente faz?”
“Vamos esperar o Dumbo e a cobertura. Se o cara sair de novo, tu segue ele.” Abelha aumenta o volume do rádio, “ó o Paulinho da Viola aí, vamos ouvir o Paulinho, pra relaxar”, e cantarola batucando no painel, com o cigarro na boca. “Meu coração tem mania de amor/ amor não é fácil de achar/ a marca dos meus desenganos ficou, ficou/ só um amor pode apagar…”
Grupos de banhistas passam devagar na calçada em direção à praia. O sol realça o colorido das cangas e toalhas enroladas na cintura das garotas. Na avenida, os carros diminuem a velocidade e buzinam para os pedestres imprudentes. Outros estacionam na calçada e deles saem mais banhistas.
Abelha sente um pouco de inveja. Recém-separado após um casamento de cinco anos, gostaria de estar na praia jogando frescobol com uma dessas morenas. Mas agora tem que se concentrar na missão, cumpri-la com eficiência.
“Vivendo e aprendendo, é o que eu sempre digo. Estou na seção de operações e capturas faz oito meses, desde a criação do CISA. Já dirigi e participei de diligências e cercos a subversivos em muitos bairros da cidade, prendi vagabundo em aparelho de todo tipo, quitinete, apartamento de classe média, casa no subúrbio, até em barraco de morro, mas nunca entrei num aparelho de frente pra praia, e numa avenida movimentada de brotos.”
Dá mais uma tragada. Nos últimos meses sobra pouco tempo para diversão. Praia, só raramente. Sua pele está ficando desbotada. Os amigos que nesta época do ano não saem da quadra da Império Serrano nas noites de sábado estranham a ausência dele nos últimos meses. Onde está o garotão que não perdia um ensaio da escola, a praia, o futebol nos fins de semana? Ele responde apenas que está trabalhando muito, sem detalhar. Não se incomoda de trabalhar em fins de semana, à noite e nos feriados de sol. Detesta rotina e gosta do que faz. Desde adolescente tem mania de ler histórias policiais de livrinhos baratos comprados em banca de revista e sempre se identificou com os detetives. Sabe, entretanto, que quando está trabalhando não é um personagem de ficção, é um agente de segurança do governo e está vivendo uma situação real, que sempre lhe causa uma boa emoção. Olha de novo o relógio.
“Leão, vai dar uma sacada na frente da casa.”
O sargento mulato desce pela porta traseira. Atrás dele seguem dois casais de banhistas de meia-idade em trajes de praia. Leão atravessa a avenida e vai até a carrocinha de algodão-doce parada no calçadão. Compra um algodão-doce de Oswaldo, conversa um pouco com ele e volta para o Opala.
“Nenhuma alteração, capitão. Tudo continua quieto. As janelas da frente estão abertas, dois carros na garagem. E a entrada é por aqui mesmo.”
“Tá oká. Entra aí, pra não dar bandeira. E vê se não suja o carro com essa meleca doce aí, pô.” Impaciente, Abelha olha mais uma vez para o relógio de pulso. “E o Dumbo que não chega, tá demorando pra cacete.”
No rádio uma vinheta anuncia: “O Globo no ar!”
“Escuta aí” diz Abelha.
“Os órgãos de segurança continuam promovendo uma intensa caçada aos sequestradores do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher. O diplomata, que foi libertado quatro dias atrás, reassumiu seu cargo na embaixada, mas pretende viajar na próxima sexta-feira para a Suíça. Os órgãos de segurança não informaram detalhes sobre as investigações. Sabe-se que o cativeiro onde o embaixador passou quarenta dias em poder dos terroristas foi uma casa em Rocha Miranda, Zona Norte do Rio…”
Abelha diminui o volume e atira na calçada o toco do cigarro. Ele desconhece os antecedentes do homem que veio prender. Disseram-lhe apenas que tem ligações com subversivos brasileiros exilados no Chile, e portanto deve ter ligação com o sequestro do embaixador. Nunca subestima um suspeito. Sempre atribui alta periculosidade a todos.
Duas peruas Kombi estacionam atrás do Opala, uma em cada lado da rua. Chacal coloca o braço esquerdo para fora, acena para os ocupantes das peruas fazendo sinal de positivo.
Abelha gira o botão do rádio, “A cobertura chegou. Só falta o Dumbo”, não encontra nada que o agrade. Sua atenção é atraída pelo letreiro pichado no muro do outro lado da rua: POR UM BRASIL LIVRE E INDEPENDENTE.
“Esses idiotas falam em liberdade e querem transformar o Brasil numa grande Cuba. Lá não tem liberdade nem ordem nem progresso. Mas os subversivos estão perdendo a guerra… Tu precisava ver, Chacal, como foi moleza descobrir essa rede terrorista entre o Brasil e o Chile. Bastou pegarmos duas mulheres que traziam umas cartas.”
“Existe mesmo uma rede?” pergunta Leão.
Abelha dá um sorriso de superioridade. “Óbvio. Agora que o Allende virou presidente, o Chile é o Shangrilá da canalha comunista brasileira. Por que os banidos trocados pelo embaixador suíço quiseram ir pra lá? É uma rede, cara. Estão montando uma base, fazendo treinamento lá, como fazem na Rússia, em Cuba. Mas vão se foder, temos informantes às pampas. Esses terroristas brasileiros são muito otários. Ficam mandando cartinha pros camaradas no Rio… Vamos ter muito trabalho pela frente. É bom pra vocês. Podem pegar uma promoção pra segundo-sargento.”
Chacal fica todo malemolente. “Podes crer. Na maior… Esse cara que a gente vai pegar é aquele que tem uma filha que a gente tava procurando?”
“Aquela do sequestro do embaixador americano?” pergunta Abelha, e acende outro cigarro. “Não, não é filha dele não. Mas é do mesmo esquema. É o pessoal que tá por trás desses sequestros todos. Dão grana pra execução dos planos, tá entendendo? Essa casa é de quem tá cheio do ouro, e ouro de Moscou. Se for mesmo um aparelho, como tudo indica, só pode ser de pessoal quente, um chefe terrorista com fachada de grã-fino.”
Leão resolve ser espirituoso. “Ou o contrário, grã-fino disfarçado de terrorista.” Só ele ri. “Será que tem arma lá dentro?”
“Deve ter, né, bicho. A gente encara. A ordem é meter bala geral e perguntar depois. Não podemos dar bobeira.”
“Só não entendi por que o comandante pediu pra gente levar o cara pra Zona Aérea, e não pro CISA, onde ficam os presos, e onde as duas mulheres estão, ou estavam.”
“Ele tem interesse especial nesse caso, porque…”
Chacal vê pelo retrovisor uma bela mulata que vem pela calçada, de bata colorida até o meio das coxas e cabelo black power. “Espera, olha só o que vem vindo aí. Pelo amor de Deus, meu irmão, isso atrapalha qualquer campana…”
Leão estica o pescoço. “Demais. Seria bom prender umas duas dessa acusando de subversão e levar pra casa. A gente ia se divertir legal. O que tu acha da ideia, capitão?”
“Esqueçam isso agora, o mais importante pra nós é darmos tudo nesta missão. E conseguir depois uma promoçãozinha de leve. Tenho fé em Deus. Só o fato de acontecer no dia de São Sebastião já é um bom sinal.”
“Se sair a promoção, tu vai continuar no mesmo trabalho?” pergunta Leão.
“Não estou a fim”, responde Abelha, e escarra pela janela do Opala. O catarro quase bate na perna de um garoto de short que passa na calçada, bola na mão, com um amiguinho. “Quero ir pra equipe de interrogatório. É disso que eu mais gosto…”
Chacal acende um cigarro. “O que eu menos gosto é do horário. Trabalhar 24 horas sem parar e folgar 72 não é pra qualquer cristão.”
“É que tu ainda não tá acostumado.” Abelha tira os óculos escuros para contemplar uma morena de bermuda que vem da praia. “E o nosso Vasco? Ganha de quanto hoje, Leão?”
“Sei lá. Eu sou Flamengo tenho uma nega chamada Teresa. Se a gente fosse enfrentar vocês, ganharia de dois a zero. Mas como vamos jogar na preliminar, e contra portugueses, vamos dar de dois a zero.” Ele pensa um pouco. “Não, três a um.”
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“Segredo de Estado”
Autor: Jason Tércio
Editora: Editora Objetiva
Páginas: 336
Quanto: R$ 33,90 (preço promocional*)
Onde comprar: Pelo telefone 0800-140090 ou pelo site da Livraria da Folha