Paulo Sérgio Pinheiro: Os ditadores sabiam, sim

 

Em entrevista, o acadêmico e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro fala sobre os trabalhos da Comissão da Verdade

“Na ditadura, o Presidente, os generais e os executores dos crimes estavam inteirados dos excessos”

 

Desafios do Desenvolvimento (revista do Ipea), via Brasil de Fato

Desde maio de 2012, o Brasil tem uma Comissão da Verdade em funcionamento. Seus objetivos são analisar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. No entanto, o foco principal está no exame dos crimes de Estado cometidos no período da ditadura militar (1964-1985). Paulo Sérgio Pinheiro, intelectual com larga trajetória na academia e na diplomacia, é um dos integrantes do novo órgão. Nesta entrevista ele fala de seu funcionamento, do exame dos crimes e da necessidade da sociedade conhecer os excessos para que eles não se repitam.

Depois de muita polêmica, a Presidenta Dilma Rousseff sancionou, em novembro de 2011, a lei que cria a Comissão Nacional da Verdade. Formada para examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado entre 1946 e 1988, a Comissão foi instalada oficialmente em maio de 2012.

O acadêmico e diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, reconhecido por sua idoneidade e identificação com a defesa da democracia e dos direitos humanos, é um dos sete integrantes da Comissão. Até maio de 2014, ele e seus colegas têm a missão de identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias em que foi praticada a repressão de Estado durante a ditadura militar.

Para isso, poderão requisitar informações e documentos de órgãos do Poder Público, independentemente de seu grau de sigilo, convocar para testemunho pessoas que possam guardar qualquer relação com os eventos examinados e até determinar a realização de perícias e diligências para coleta de informações. Ao final do trabalho, devem apresentar um relatório com conclusões e recomendações de medidas e políticas públicas para assegurar a não repetição de tais violações.

Nesta entrevista, Paulo Sérgio Pinheiro detalha como anda o trabalho e os principais desafios que a Comissão Nacional da Verdade tem pela frente.

Desafios do Desenvolvimento – Como está sendo realizado o trabalho da Comissão?

Paulo Sérgio Pinheiro – Das quarenta Comissões da Verdade que conheço, a maioria levou seis meses para decolar. Talvez aqui no Brasil devêssemos ter estipulado um prazo para organizá-la. Mas já há muita coisa acumulada, não partimos do zero. Somos sete membros e 15 assessores, mais consultores e secretária. Há várias equipes trabalhando, fundamentalmente com arquivos. Os do Itamaraty, por exemplo, têm quatro toneladas de documentos. Nada foi queimado. Também há a tentativa de se ter acesso a documentos das Forças Armadas. O ministro Celso Amorim [da Defesa] tem dialogado e dado apoio, da mesma maneira que o ministro [Antonio] Patriota [Relações Exteriores]. Teremos ainda acesso aos documentos da Funai [Fundação Nacional do Índio], pois muitas violações foram cometidas em ações contra indígenas, ou que tiveram relação com conflitos agrários. Uma subcomissão importante, é a que analisará o papel do Judiciário na ditadura. Aquele poder sofreu e também colaborou intensamente com a aplicação da legislação autoritária. Além disso, estamos preocupados com os milhares de membros das Forças Armadas reprimidos e punidos internamente durante o período, algo que pouco se tem falado. Por fim, uma das preocupações fundamentais é completar as informações sobre os desaparecidos – 475 foram analisados pela Comissão de Mortos e Desaparecidos – e os exterminados, como os 42 sobreviventes da guerrilha do Araguaia que foram assassinados na última “Operação Limpeza”, em 1974.

O senhor está trabalhando em qual das subcomissões?

Eu trabalho com a questão dos sistemas de informações externas, numa rede que existiu dentro do Ministério das Relações Exteriores e que teve colaboração bastante estreita com os órgãos de repressão. Também tenho um interesse especial pela reconstituição dos vários crimes que estão na lei, como os assassinatos, desaparecimentos forçados e prisões arbitrárias, como configurando uma política de Estado dos governos da ditadura. Quer dizer, é preciso superar aquela noção de que tivemos práticas e excessos cometidos por alguns poucos. Na verdade, desde o Presidente da República, os generais e até os que executaram cometeram esses crimes, todos estavam absolutamente inteirados. Mas isso resta ser documentado.

No caso dos desaparecimentos forçados e assassinatos já comprovados, há uma perspectiva de a Comissão fazer um estudo caso a caso?

Refazer os 400 casos e mais as centenas de outras ocorrências individuais é uma tarefa impossível. Mas estamos começando a reexaminar laudos de necropsia utilizados nas informações sobre esses desaparecimentos.

Uma das polêmicas sobre o funcionamento da Comissão Nacional da Verdade tem sido o sigilo de seu trabalho. Qual a sua opinião sobre isso? A ideia é que, ao final, tudo se torne público?

Por trás dessa polêmica há uma enorme desinformação. Recentemente tivemos um seminário sobre comissões da verdade na América Latina e todas, também a da África do Sul, trabalharam com confidencialidade. Trata-se de uma investigação sobre crimes cometidos. Então não dá para fazer audiências com torturadores ou suspeitos envolvidos nos desaparecimentos na frente da televisão! Se considerarmos que há possibilidade de obter informações que não teríamos, podemos conceder o anonimato. Do mesmo modo que a imprensa trabalha com sigilo de fontes, nós também trabalhamos com sigilo dos depoimentos. Isso é assim, foi assim e vai continuar sendo assim. Mas também há uma dimensão pública do trabalho, que são as audiências coletivas, em que se ouvem depoimentos específicos. É evidente que a informação sobre o que se faz tem que ser pública. O nosso site ainda é muito insatisfatório, vai ser aperfeiçoado, mas vamos informar minuciosamente tudo o que se faz: as correspondências trocadas com as autoridades, que tipo de arquivo consultamos etc. Agora, depoimentos no curso de uma investigação, não vamos publicar. Se vamos publicar depois, é outro problema.

Há também um objetivo de estabelecer um diálogo com a sociedade através dessas audiências?

Para mim, a audiência pública ideal é a que trata de um caso concreto: o depoente, acompanhado de um advogado, com o relato sendo televisionado de modo que os que sofreram os crimes possam testemunhar. Isso nos dá informações, mas também tem um papel em relação às vítimas, que podem participar publicamente do processo. Vamos visitar todos os Estados. No Pará, o governador Simão Jatene disse que vai propor a todas as correntes políticas a criação de uma Comissão estadual. Em Alagoas, ela já foi formada. Na OAB de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul também.

Estão surgindo também comissões nas Assembleias Legislativas e em universidades. Qual o papel desses espaços?

A Comissão Nacional da Verdade não é coordenadora desses movimentos. Ela tem um estatuto especial, é uma comissão do Estado, produto de uma lei, nomeada pela Presidenta da República para apresentar um relatório final do seu trabalho. Mas é evidente que vamos colaborar com essas comissões. Acho da maior validade, por exemplo, o movimento do Levante Popular, feito pelos estudantes. Isso politiza o tema. O escracho e os comitês de memória dentro das universidades estão dando uma contribuição extraordinária.

Essas ações dialogam com um dos objetivos da Comissão, que é sensibilizar a sociedade para o que aconteceu neste período?

Não precisamos ter grandes ilusões de que uma sociedade profundamente autoritária e fundada no racismo estrutural vá se mobilizar de um dia pra outro e sustentar a Comissão da Verdade. Mas é evidente que a diferença entre silêncio e mobilização pode melhorar, inclusive com a ajuda da mídia. Nossa comissão é a única da América Latina que está acontecendo no século XXI. No funcionamento das Comissões da Verdade na Guatemala e de El Salvador não havia internet, twitter, facebook, nem toda a digitalização de arquivos. O atraso da criação da Comissão assim é altamente compensado pelo que foi realizado e pelos novos meios de comunicação.

O senhor falou da colaboração entre Comissão e Ministério da Defesa. Mas o ministro anterior, Nelson Jobim, chegou a afirmar que todos os documentos haviam sido destruídos. Como está esse processo agora?

O ministro Jobim é meu amigo, fez o primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos, mas a posição oficial da Comissão, que já foi publicada, é que julgamos ilegais esses atos de destruição de documentos. Minha opinião é que só quem acredita em fadas acha que não existe nenhum arquivo. A própria Aeronáutica cedeu vários deles para o Arquivo Nacional.

Pessoalmente, como o senhor se vê neste processo?

Somos um grupo muito integrado, de grande coesão. Todos já trabalhamos, em algum momento, um com o outro. E temos uma equipe extraordinária de assessores e consultores, além do apoio da Presidenta Dilma, sem interferência de nenhum ministro. O apoio material do governo também é muito maior do que eu podia supor.

Como o senhor analisa as críticas feitas às funções e formato da Comissão antes da aprovação da lei?

Essas críticas vieram de setores que desejavam uma Comissão da Verdade com funcionamento de tribunal. Ora, nenhuma das quarenta Comissões da Verdade, inclusive a da África do Sul, teve poder judicial. O importante é que nossa comissão tem mais poderes do que qualquer outra da América do Sul e Central no século XXI, porque temos o poder de convocar qualquer cidadão ou cidadã.

Funcionários civis e militares então, nem se fala! E os que não vierem, denunciaremos ao Ministério Público Federal. Em segundo lugar, temos acesso a qualquer arquivo, não importa seu grau de sigilo. Nos ministérios, já temos acesso a documentos secretos e ultrassecretos. Em terceiro, ao contrário do Poder Judicial, por causa da Lei da Anistia e do acórdão do Supremo Tribunal Federal, temos o mandato de indicar a autoria e as circunstâncias em que foram cometidos os assassinatos, as torturas, os desaparecimentos forçados e a detenção arbitrária.

Houve afirmações também de que a Comissão não conseguiria trabalhar por conta da decisão do STF sobre a Lei de Anistia.

Foi outra choradeira. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. A Lei da Anistia não nos atrapalha nem ajuda, é algo que não nos impede de fazer o que a Comissão nasceu para fazer. O relatório final vai indicar a autoria e as circunstâncias em que esses crimes foram cometidos pela ditadura.

Considerando sua experiência em direito internacional e o conflito entre a decisão do STF sobre a Lei de Anistia e a decisão da Corte Interamericana no caso Araguaia, existe a possibilidade de, no relatório final da Comissão, haver uma recomendação para que a Justiça de responsabilize os responsáveis pelas violações de direitos humanos durante a ditadura?

Não sei. Felizmente ainda temos vinte meses para resolver essa questão das recomendações. A posição de todos os membros da Comissão da Verdade, inclusive a minha, que fui membro por oito anos da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e apoiei a decisão do presidente Fernando Henrique, em 1998, de reconhecer a competência da Corte Interamericana, é que uma decisão da Corte deve ser cumprida pelo Estado brasileiro. A doutrina do direito internacional interamericano diz que as autoanistias não são válidas, e a anistia no Brasil, como já falei muitas vezes, foi uma autoanistia. O Supremo não entendeu assim, mas não cabe a mim nem à Comissão da Verdade ficar contestando essa decisão. É algo que cabe ao Estado brasileiro, e isso não nos atrapalha.

O senhor concorda com a estratégia do Ministério Público de abordar judicialmente crimes como o desaparecimento e a ocultação de cadáveres como crimes não prescritos, para poder responsabilizar os perpetradores?

Não tenho competência para avaliar se é uma boa ou uma má estratégia. Só posso dizer da minha satisfação em ver o Ministério Público Federal e o Sistema Judiciário brasileiro assumindo seu papel dentro dos ditames da lei, que dão a eles alguma possibilidade de ação. Digo a mesma coisa sobre outras condenações que estão surgindo. Tenho a maior alegria em ver o resultado de casos como o [do coronel Carlos Alberto Brilhante] Ustra [declarado torturador pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em agosto último], especialmente pelo que isso significa para as famílias dos que foram torturados e assassinados. Essa manifestação dos tribunais brasileiros é algo que dá grande conforto e esperança às famílias.

Por outro lado, há setores que ainda reagem aos avanços. O Grupo Tortura Nunca Mais, do Rio de Janeiro, teve sua sede invadida. É de se esperar que, com o funcionamento da Comissão da Verdade, conflitos sociais venham à tona para disputar diferentes visões sobre este período na sociedade?

Nós estamos numa democracia. No Brasil vigora a liberdade de opinião, as pessoas e a imprensa são livres para se expressar. Mas evidentemente não se pode cometer crimes, como essa invasão da sede do Tortura Nunca Mais, que deve ser investigada. Desde que a expressão dessas opiniões não seja traduzida em crimes, as pessoas são livres para pensar o que quiserem sobre a Comissão da Verdade. Não espero unanimidade.

Um dos objetivos da Comissão da Verdade é a promoção da reconciliação nacional. Qual a sua leitura sobre esse conceito?

Este termo está presente na lei que criou a Comissão e na denominação de várias outras comissões da verdade pelo mundo. Mas enquanto não tivermos bem encaminhados na reconstrução da verdade, é muito cedo para se discutir reconciliação. Também depende do que vamos encontrar; a reconciliação pode ocorrer na dinâmica do processo. As vítimas querem antes saber sobre a autoria, as circunstâncias e a responsabilidade do Estado, para então fazer esse trajeto da reconciliação. Mas não somos nós que vamos guiá-las. Este é um tema para o Estado brasileiro.

Quando a lei que cria a Comissão aponta no sentido da reconciliação, ela sinaliza uma preocupação com o legado da ditadura nos dias de hoje. Na sua avaliação, esse legado persiste?

O entulho autoritário continua, por exemplo, na parte da tortura. Não tem jornalista ou preso político torturado, mas é um vexame que isso ainda continue. Execuções sumárias pelas polícias militares do Rio de Janeiro e de São Paulo também são intoleráveis. A democracia não pode continuar a conviver com isso. Também não pode conviver com o ensino nas Forças Armadas ainda passar uma visão da ditadura militar totalmente positiva, como se não existissem os crimes que estamos discutindo. O processo, dinâmica e as recomendações da Comissão podem contribuir para superar esse legado autoritário. Por outro lado, uma das minhas tarefas na Comissão é reconhecer onde que progredimos. Senão, nos daríamos um atestado de incompetência total.

Quais os grandes gargalos que o país ainda enfrenta na garantia dos direitos humanos?

Ainda que tenhamos caminhado na luta contra a pobreza extrema, além dos direitos econômicos e sociais, o gargalo são os direitos civis e a defesa dos direitos das minorias. A situação subalterna ainda prevalece nos direitos econômicos e sociais, por exemplo, para a maioria afrodescendente. É importante reconhecer que o Brasil teve uma continuidade na política de direitos humanos. As violações continuam, mas não são mais uma política de Estado.

Apesar de a violação de direitos humanos não ser mais política de Estado, ainda há políticas de Estado que possibilitam a violação?

Mas não é o Estado que organiza os crimes cometidos por seus agentes. As violações hoje cometidas por agentes do Estado nos estados da Federação não são coordenadas como foram durante o regime militar, o que já é uma diferença extraordinária. Continuará a haver problemas, porque a caminhada dos direitos humanos nunca termina. Temos uma porção de problemas, mas é preciso olhar para o que avançou para reexaminar em que falhamos e o que deu certo.

 

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