O Livro dos Visitantes

O diálogo pode, certo dia, ter sido mais ou menos assim:

– Que saco! Anotar nome, patente (ou cargo) e arma (ou empresa) de cada sujeito que entra aqui, cacilda, bem no centro de São Paulo, uma das maiores cidades do mundo! É um entra e sai de gente, dia e noite, e nós tendo que anotar as informações de cada um! Esses caras lá de cima não têm coisa melhor a fazer do que nos obrigar a isso, ao invés de nos deixar vigiando cuidadosamente quem chega, tarefa bem mais condizente com a nossa formação militar? – reclamava indignado o cabo que mais tarde acabou detido por questionar demais, posto que cada cabo do Exército tinha direito a fazer um único questionamento por semana e esse aí já disparava na liderança das inconveniências funcionais.

– Com todo o respeito, Cabo, mas prefiro preparar-me cumprindo essa ordem, que deve ser importante no contexto geral das atribuições da nossa unidade, do que sentar atrás de uma pilha monstruosa de papeis. Cumprindo bem esta missão, poderei ser notado e então chamado a combater terroristas, atuação que fará o orgulho máximo do meu pai, que me disse que eu entraria no Exército mas só poria de novo os pés em casa depois de ter fuzilado ao menos um desses malignos guerrilheiros urbanos que vivem desafiando o Sistema e conturbando a vida das pessoas – respondeu-lhe educadamente o soldado, queimando assim sua cota mensal de uma única contestação a ordens, comentários ou desabafos de superiores.

Apesar de viver encafifado pela curiosa evidência de que entravam no prédio mais pessoas do que saíam, pelo menos por aquela porta que lhes cabia guardar com zelo e pompa, o que possivelmente indicaria que alguns ali entravam mas que dali não saíam, o que talvez explicasse as pancadas surdas e os gritos abafados que escutava todas as noites do seu posto de vigia, fenômenos que lhe era ordenado olvidar para o bem de todos e a felicidade geral da nação, e que tivesse todos os olhos voltados para fora do prédio e ouvido nenhum para dentro, o fato é que o soldado venceu, não por si, mas pela incontestável determinação emanada de algum ponto alto, muito alto na hierarquia, mas que ninguém jamais lembrou de avaliar se era vantajosa ou não para dito Sistema.

Devido a esse soldado ambicioso e a essa ordem estúpida, bem como ao esquecimento geral de um que outro detalhe das operações aqui e ali, coisas que acontecem e que se resolveriam num instante com um simples tapa se aplicado na hora certa, ou seja, antes da promulgação da Lei da Anistia imposta, para se safar, pelo próprio Sistema antes de sair oficialmente de cena, mas não sem antes deixar a postos, atilados e vigilantes (“o preço da liberdade é a eterna vigilância”), os seus asseclas, ops!, os seus fieis agentes de antanho; graças a esse soldado desconhecido e benemérito, que já está por merecer uma estátua em tamanho natural na praça central de cada uma das cidades do País (podem ser estátuas copiadas industrialmente em série, não faz mal), chegaram até nós, como relata o jornalista Roldão Arruda, de O Estado de São Paulo, “seis livros grossos, com folhas pautadas e numeradas, com o registro de quem entrava e saía da ala reservada à diretoria no antigo edifício do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS)” no período de março de 1971 a janeiro de 1979.

As gentes ali arroladas são oficiais do Exército, delegados de polícia, cônsules dos EUA, empresários e representantes de universidades paulistas e da FIESP.

 

Por Amílcar Neves – escritor. Crônica publicada na edição desta quarta-feira (20.2) do jornal Diário Catarinense (Florianópolis-SC)

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