Jogo de luzes e sombras

Revelado bloqueio de acesso a documentos da ditadura militar nos ministérios, Planalto decide depositar papéis no Arquivo Nacional

Quando a presidente Dilma Rousseff sancionou, no dia 18 de novembro de 2011, a Lei de Acesso à Informação e a criação da Comissão da Verdade, ela afirmou que, a partir daquela “data histórica”, o Brasil iria “comemorar a transparência e celebrar a verdade”.

A distância que separa as palavras dos atos que lhes são correspondentes, contudo, quase sempre é larga. No caso da Lei de Acesso, especialistas já diziam que, para se adaptar às novas regras de transparência, o país precisaria de mais do que os seis meses previstos pelo diploma legal.

Uma reportagem desta Folha, publicada no domingo, trouxe um claro exemplo dessa dificuldade. Mais de um ano após a lei ter sido sancionada pela presidente, pelo menos nove órgãos federais vinham criando empecilhos ao acesso a documentos produzidos por ministros de Estado durante a ditadura militar (1964-1985).

Ficavam fora do alcance imediato de pesquisadores avisos, memorandos, ofícios, exposições de motivos e telegramas produzidos por autoridades do regime militar, como os ministros das três Forças Armadas, da Fazenda e da Justiça.

Essa parte do acervo da ditadura tampouco estava sob guarida do Arquivo Nacional -como deveria- ou nas mãos da Comissão da Verdade -criada para investigar violações aos direitos humanos entre 1946 e 1988.

Sem que estivessem devidamente arquivados, os documentos localizados pela reportagem não estavam catalogados nem tinham o conteúdo descrito na maior parte dos casos. Não é pequena a dificuldade que essa situação cria para historiadores e jornalistas.

Ainda pior, alguns órgãos só permitiam que a pesquisa fosse feita em certos dias do mês. E, como regra, não há sala específica para a leitura dos papéis.

Dois casos eram particularmente preocupantes. O Comando do Exército não autorizou que seu arquivo fosse visitado, por se tratar de suposta “área de segurança”; e a Casa Civil informou que, por falta de tempo para analisar seus documentos, não permitiria o acesso.

O relato sobre tais obstáculos parece ter constrangido o governo. Ontem, o Planalto decidiu enviar ao Arquivo Nacional os milhares de papéis retidos pelos ministérios.

Ainda que a Presidência tenha atuado de forma reativa, não se pode deixar de reconhecer que a decisão representa um avanço. Apenas quando todo o material estiver à disposição do público, como determina a Lei de Acesso, o Brasil poderá conhecer melhor esse capítulo escuro de sua história recente.

Não se pode permitir que interesses corporativos, como os das Forças Armadas, ou meros esbirros burocráticos mantenham sombras sobre o passado do país.

 

Governo manda liberar papéis da ditadura

Documentos produzidos por ministérios durante regime militar serão reunidos e enviados ao Arquivo Nacional

Material de ao menos 9 órgãos federais inclui avisos, telegramas e ofícios e será aberto a consulta do público

O governo federal decidiu reunir e enviar ao Arquivo Nacional todos os milhares de documentos produzidos pela ditadura militar (1964-1985) que, como a Folha revelou anteontem, estavam retidos em ministérios, fora do alcance imediato do público.

A ação será coordenada pelo Ministério da Justiça, ao qual o Arquivo Nacional está subordinado. A pasta vai determinar aos outros ministérios que enviem todos os acervos. Eles serão catalogados e abertos à consulta. Não foi informado se há a intenção de digitalizar os papéis.

Esse material inclui avisos, memorandos, ofícios, exposições de motivos e telegramas produzidos pelas mais altas autoridades do regime militar -dentre elas, os ministros das três Forças Armadas, da Fazenda e da Justiça.

Guardados em pelo menos nove órgãos federais em Brasília, esses documentos não eram conhecidos até aqui por pesquisadores, a despeito da Lei de Acesso à Informação, que possibilita que sejam tornados públicos.

O estudo dos papéis pode elucidar diversos pontos obscuros do funcionamento do regime e de seu aparato.

Criada pela presidente Dilma Rousseff para elucidar essas violações aos direitos humanos, a Comissão Nacional da Verdade também desconhecia os arquivos.

Questionado, o colegiado, que se reuniu ontem em Brasília, não se pronunciou sobre a existência dos papéis até a conclusão desta edição.

Anteontem, a Casa Civil já tinha informado que liberaria para o público os documentos em seu poder -os mesmos cujo acesso havia sido negado anteriormente.

A Casa Civil assumiu então que os documentos existiam, mas afirmou que não poderia atender o pedido pois eles poderiam conter informações protegidas por sigilo e não havia estrutura para analisar completamente a documentação antes de liberá-la.

A mudança de posição do órgão não foi justificada.

(RUBENS VALENTE, MATHEUS LEITÃO E JOÃO CARLOS MAGALHÃES)

 

 

ANÁLISE

Legislação abriu arquivos públicos, mas órgãos ainda têm resistência

 

O primeiro grande acervo de documentos do regime militar apareceu em 1997 -os papéis da extinta Divisão de Segurança e Informações do Ministério da Justiça, repartição do SNI (Serviço Nacional de Informações) que havia em todos os ministérios civis.

Desde então historiadores, arquivistas, jornalistas e outros interessados lutam para que os documentos da ditadura fiquem disponíveis à consulta. Várias regulamentações foram tentadas, que buscavam equacionar o conflito entre a necessidade de acesso à informação e as cautelas que dizem respeito ao sigilo que determinados documentos devem ter, bem como à privacidade das pessoas.

Foi só com a Lei de Acesso à Informação, em 2011, que se encontrou uma fórmula apropriada: o sigilo e a privacidade não podem ser alegados quando se trata de documentos que registrem possíveis violações dos direitos humanos. Hoje o Brasil conta com legislação adequada que garante em tese pleno acesso aos documentos da ditadura.

Na prática, porém, existem problemas. O principal é a recusa dos comandos militares de transferirem ao Arquivo Nacional todos os documentos daquele período. Tempos atrás, o então ministro da Defesa disse que os papéis da ditadura “já desapareceram”. A reportagem publicada pela Folha no domingo comprova que não é bem assim.

Entretanto, agências governamentais civis também resistem a abrir seus arquivos. A história da ditadura não se reduz à repressão militar: como foram feitas as “obras faraônicas”? De que modo o regime militar afetou o cotidiano de universidades ou de empresas estatais? Muito ainda resta por ser conhecido.

A Lei de Acesso à Informação não “ficou no papel”. Mas cabe ao Executivo ser o primeiro a dar o exemplo: não reter no subsolo da Esplanada dos Ministérios papéis que já deviam estar no Arquivo Nacional há muito tempo.

CARLOS FICO é professor titular de história do Brasil da UFRJ

 

 

Postado por Jorge Werthein

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