O que se espera da Comissão da Verdade

Aposse, hoje, dos sete integrantes da Comissão da Verdade é a penúltima etapa de um longo processo de debate e reflexão sobre como a sociedade deve preencher as lacunas herdadas da dramática história da “guerra suja” na ditadura, em que grupos de extrema esquerda foram reprimidos pelos militares, com um saldo de torturados, mortos e desaparecidos.

A formulação da proposta de criação da Comissão já é, em si, um exemplo de como a livre discussão num regime democrático se constitui fórmula infalível de se aperfeiçoar ideias. Da primeira proposta de instituição deste grupo até hoje passaram-se três anos.

A Comissão foi mencionada, em 2009, no 3 Programa Nacional de Direitos Humanos, no governo Lula. Mas ela surgiu contaminada pela visão revanchista de alguns setores do governo. Ainda se tentava encontrar brechas que levassem aos tribunais agentes públicos envolvidos naquela guerra. Estes, por porta-vozes escolhidos entre militares da reserva, pediam tratamento equânime. Queriam que terroristas e guerrilheiros também respondessem na Justiça pelos atos daqueles tempos.

Mas a revanche nunca teve respaldo jurídico, porque a Lei de Anistia, de 1979, aprovada ainda no governo militar de João Baptista Figueiredo, foi ampla, geral e recíproca. Quer dizer, beneficiou os dois lados. E tinha – como tem – a legitimidade de ter saído de uma ampla negociação entre líderes da oposição e os generais, ao contrário do que aconteceu em outros países latino-americanos. O Supremo Tribunal Federal terminaria reafirmando a constitucionalidade da lei, e com isso a questão da punição deixou, de uma vez por todas, de fazer sentido.

A escolha dos sete participantes da Comissão consumiu quase seis meses e foi inatacável. É evidente a precaução da presidente Dilma em incluir entre os nomeados Rosa Maria Cardoso da Cunha, sua advogada quando foi prisioneira política. Qualquer referência à presidente, em algum depoimento, será feita diante de uma testemunha do que Dilma passou nos porões do regime. A presidente está no seu direito. E também Rosa Maria viveu intensamente aqueles tempos.

Não houve viés político-partidário. Se a psicanalista Maria Rita Kehl pode ser considerada próxima ao PT, há um ex-ministro da Justiça e um ex-secretário de Direitos Humanos de FH, José Carlos Dias e Paulo Sérgio Pinheiro. Assim como um ministro da Justiça de Sarney (José Paulo Cavalcanti Filho); Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça; e o procurador-geral da República na gestão Lula, Cláudio Fontelles.

Entrevistas concedidas após a indicação identificaram alguns desencontros de posição sobre o alcance do trabalho da Comissão. Houve desmentidos, mas, mesmo que haja conflitos – naturais, diante do assunto -, a qualificação do grupo é garantia de que o consenso será possível.

A Comissão da Verdade, sem revanchismo, servirá para resgatar um relato que falta para a História e familiares de vítimas: o paradeiro de mortos, desaparecidos e o que houve nos porões do regime. O Brasil, assim como retirou por impeachment um presidente do Planalto, sem uma vidraça estilhaçada nas ruas, conseguiu fazer uma transição de volta à democracia também sem violência. A Comissão precisa ser um fecho à altura destas demonstrações de maturidade política.

 

Fonte – O Globo

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