O racismo contra os indígenas está vivo e passa bem

por elaine tavares  – jornalismo

Uma entrevista em vídeo realizada com a cacique Eunice Antunes, da comunidade Guarani, do Morro dos Cavalos, mostrou o quanto a questão indígena em Santa Catarina também é revestida de profunda violência. O “sul maravilha”, de certa forma, passa a imagem de um espaço civilizado, longe da truculência de regiões conflagradas como a Amazônia ou o Mato Grosso do Sul, nas quais é comum o assassinato descarado de índios. Só que isso é pura ilusão. Ou pior. Mostra que quando os índios estão quietos, confinados na sua miséria, é sempre muito fácil parecer “bonzinho” e “respeitar” os direitos, no geral expressos em distribuição de cestas básicas. Mas, se eles se levantam em luta e exigem que as terras sejam demarcadas, que a lei seja cumprida, aí a violência assoma, com sua cara feia, e todo o racismo que subjaz no cotidiano igualmente aflora.

A comunidade Guarani do Morro dos Cavalos é um espaço de quatro hectares onde se apertam 28 famílias, 200 almas. Elas reivindicam desde há anos suas terras ancestrais e, finalmente, em 2008, os 1.997 hectares aos quais têm direito foram demarcados. Só que nesse território também estavam mais de 60 famílias de “juruás” (os brancos), que, ou grilaram ou compraram as terras e agora precisam sair. O trabalho da Funai tem sido sistemático no sentido de indenizar e retirar as famílias. A maioria tem aceitado, mas uma parcela insiste em ficar. Sentimento justo, afinal, algumas estão ali há gerações. E é por aí que se espraia o conflito. O governo do estado deveria também indenizar as famílias, no valor da terra, já que a Funai só paga as benfeitorias, por conta de que o espaço é uma reserva natural e não poderia ter ninguém morando.

Pois a fala da cacique (http://youtu.be/bKUKCXHDCKU), contanto essa história e, inclusive, se colocando a favor da indenização dessas famílias, fez brotar um onda de violências verbais nos comentários do You Tube, que bem mostram a intolerância, o ódio e o preconceito que cerca a questão indígena. “O diretor da escola Itaty diz que os jovens só ficam brincando, vendo TV depois da aula, pois recebem bolsa família,bolsa escola. A cacique ainda não os ensinou a pescar, caçar, afinal ela não tem tempo, pois fica só recebendo informação da FUNAI. Que cultura é essa de índio recebendo bolsa do governo?”, diz um dos comentários. E outro: “A cacique é bem viajada, faz turismo com nosso dinheiro. Quase não fica na aldeia,  está explicada a vinda dos índios à vila pedir (esmolar). Essa é boa vida deles. Não é preciso ser índio, basta seguir a religião para se dizer índio”.

Outras barbaridades como chamar a cacique de boliviana, paraguaia, estrangeira e fazer piada com o fato de ela estar usando batom foram depois retiradas dos comentários quando alguém sugeriu que ia entrar na justiça por racismo. O debate mostra, com riqueza de detalhes, o ranço que existe, indelével, não só nas comunidades próximas à aldeia, mas também em todo o estado. Para boa parte das pessoas, índio só é bonitinho nas páginas dos livros ou quietinho nas aldeias. Bastou gritar, exigir direitos, para virar inimigo, “coisa ruim”.

 

Ser índio

O movimento de recuperação das culturas originárias que assomou na América Latina desde o final dos anos 90 demorou a chegar no Brasil. E não poderia ser diferente. Ao contrário de países como a Bolívia, Equador, Guatemala e outros que contabilizam a maioria da população como indígena, aqui no Brasil os povos autóctones foram sendo dizimados desde a chegada dos portugueses em 1500. Com a leva dos imigrantes logo após a abolição da escravatura, mais uma onda de destruição dos povos indígenas se fez. No início do século XX, com a necessidade de abertura de novas fronteiras agrícolas, também a região norte, ainda bastante isolada, foi sendo tomada. Restou aos indígenas o confinamento em reservas ou a integração forçada na vida dos brancos.  Tudo isso foi provocando a desaparição de povos inteiros e a falta de uma política clara de demarcação dos territórios também fomentou uma espécie de “guerra” permanente com os interesses dos fazendeiros, mineradores e madeireiros que foram invadindo as terras indígenas.

Hoje, depois de mais de uma década de lutas importantes pela América Latina e a profunda mudança na posição dos indígenas diante de sua realidade, também os povos do Brasil começaram a se integrar no processo de retomada da cultura e da identidade. Tanto que , segundo o IBGE, a população indígena cresceu 205% desde 1991. Isso porque muitas pessoas que já estavam no mundo urbano, “integradas”, também resolveram assumir sua identidade e lutar pela sua cultura. Hoje, o Brasil já contabiliza 896,9 mil índios de 305 etnias, e em quase todos os municípios (80%) tem alguma pessoa autodeclarada indígena. Até mesmo alguns grupos já considerados extintos, como os Charrua, se levantam, se juntam, retomam suas raízes, formam associações e lutam por território. A maioria dos indígenas, 63%, ainda vive em área rural e o IBGE também constatou que aqueles que já estão com suas terras demarcadas conseguem viver com mais tranquilidade, vivenciando suas culturas. Esses, conformam também uma maioria, com mais  de 500 mil pessoas.  

A única exceção é a terra dos Yanomami, a mais populosa, com 25 mil e 700 habitantes, entre os estados do Amazonas e Roraima, que tem sofrido a invasão sistemática de garimpeiros em busca de ouro e outros minerais. Vários conflitos são registrados sistematicamente na região desde o ano de 1996, quando o então deputado Romero Jucá entrou com um projeto de lei para regulamentar a mineração em terras indígenas, principalmente na dos Yanomami. Naquele mesmo período, segundo denúncia dos indígenas, ele e José Sarney derramaram mais de 40 mil garimpeiros na área, exacerbando os conflitos. Esse projeto tramitou e em 2012 o deputado Édio Lopes (PMBB), de Roraima, apresentou um substitutivo global, o qual sugere a cessão de quase 80% do território Yanomami para grandes empresas mineradoras. Existem, hoje, mais de 650 requerimentos de empresas querendo minerar nas terras indígenas. Assim, sob a alegação de que as riquezas nacionais precisam ser exploradas, mais uma vez os indígenas correm risco de perderem sua vida. “Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite cai realmente e que se possa ver as estrelas”, insiste Davi Yanomami, mas esse seu desejo não é levado em consideração quando o que está em jogo é a expansão do capital e a exploração desenfreada de minerais.

Não bastasse isso, outras comunidades do norte estão hoje completamente ameaçadas pelas famosas obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). Essa região concentra 38,2 % dos projetos, que envolvem abertura de estradas e construções de usinas. Dos 61 projetos em andamento no norte, 37 deles estão da região amazônica e devem atingir 30 áreas indígenas . O mais emblemático e que já provocou dezenas de conflitos é o de Belo Monte, uma obra gigante que coloca em risco todos os povos do Xingu.

Outro drama que se desenrola longe das câmaras de TV e da consciência nacional é o do povo Pankararu, uma comunidade de oito mil pessoas que sempre viveu às margens do Rio São Francisco, em Petrolândia, Pernambuco, e que agora está sem acesso à água e ao rio por conta das obras de transposição.  Desalojados, perdidos da relação com o rio, eles são abastecidos com carro-pipa, nas piores condições, enquanto o governo fala nas maravilhas da transposição, que nada mais é do que a proposta de levar água ao agronegócio. Já, com os índios, quem se importa?

Também os povos que vivem no Mato Grosso do Sul amargam violência e desamparo. São mais de 30 acampamentos de indígenas no estado, que é o que lidera o triste pódio de assassinatos de índios (62% ) , assim como o de mortes de crianças indígenas por falta de assistência médica. Recentemente uma comunidade de Guarani Kaiowá, com 170 pessoas, que estava acampada em dois hectares na beira de uma estrada, ameaçou resistir até o último homem caso fosse despejada. O drama provocou comoção nacional quando a mídia falou em suicídio. Na verdade, o estado de Mato Grosso do Sul também é campeão em número de suicídio de índios, com mais de 1.500 casos registrado nos últimos dez anos, sendo a maioria de jovens de 13 a 15 anos, completamente destituídos da vontade de viver sem condições de serem plenos na sua cultura.

 

A voracidade do capital

E assim é a situação dos povos indígenas nesse país. Sempre tendo de superar dezenas de barreira para simplesmente ser. No Amazonas meninas índias trocam a virgindade por 20 reais, madeireiros assassinam índios no Pará, fazendeiros escravizam índios em Vacaria, Rio Grande do Sul , índios morrem nos cantões tentando defender suas terras. Tudo isso aparece como pequenos “drops” informativos, como se fossem casos esdrúxulos, fora do normal.  Não são. Essa é a realidade cotidiana de milhares de indígenas, todos os dias colocados sob o foco do racismo, tal como agora acontece em Santa Catarina. São chamados de feios, sujos, vagabundos, bêbados, paraguaios, escória do mal. Basta de saiam de suas aldeias e reivindiquem. Agora, com a política de cotas, eles estão entrando nas universidades. Mais um espaço no qual o racismo aflora com força.

É uma tarefa dura para as gentes autóctones viver num mundo que os hostiliza sempre que saem da sua condição de “coitadinhos”. Mas eles estão aí, crescendo, se multiplicando. Com outros tantos de autodeclarando, assomando na cultura, na língua, no território. Nunca será fácil. A consciência de que todo o território foi roubado custa a se formar , daí a violência que se vê no dia-a-dia. Mas, muito mais do que isso, o que provoca a maior parte dos conflitos é insaciável expansão do capital. Terras indígenas como as do Mato Grosso do Sul são pura fertilidade, os fazendeiros as querem. Também são ricas em minério as terras amazônicas, e os interesses multinacionais são gigantes. Daí que fomentar o racismo, provocar o ódio, também faz parte da estratégia do capital. Fica mais fácil destruir, derrotar, extinguir aquilo que as pessoas consideram “lixo”. Assim, não há culpas.

Por isso que no sul do Brasil, na “europa” brasileira, Santa Catarina, famílias de gente boa, pia, se engalfinham em discórdia com os índios, os sujos, os paraguaios, os estrangeiros. Parece até coisa do realismo fantástico. Chamam de estrangeiros aqueles que são os verdadeiros donos da terra. Na terra Guarani, nesses dias de outono, as gentes espiam pelos barracos mal havidos, com medo. Porque ousaram lutar e garantir seu território. Agora amargam a violência e a discriminação. E, ao largo, a vida passa.

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