A Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, anunciou na última terça-feira (19) o lançamento de uma nova política pública para ampliar o programa de reparação a familiares e vítimas de tortura no Brasil, durante o período da ditadura militar (1964-1985).
Atendendo a demandas históricas de importantes segmentos da sociedade civil, a partir de abril, o governo irá oferecer assistência psicológica gratuita a 702 pessoas em quatro cidades – São Paulo, Recife, Rio de Janeiro e Porto Alegre – através das Clínicas do Testemunho.
Em entrevista por e-mail ao Portal Vermelho, o presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão, explicou que as perspectivas mais avançadas sobre reparações pós-conflito, como as expressas pela ONU e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, apontam para a necessidade de promovermos a chamada “reparação integral”.
“Uma reparação integral ultrapassa a simples compensação econômica, ou mesmo o ato de reparação moral que é o pedido oficial de desculpas do Estado. Ela depende também da atenção para outras dimensões da subjetividade daqueles que foram vitimados pela violência. E é aqui que entra o Clínicas do Testemunho. O projeto busca reparar não apenas os atingidos diretamente, mas também aqueles que sofreram sequelas do autoritarismo, como filhos, pais e companheiros.”
Segundo ele, as clínicas atuaram como um novo instrumento no programa de reparações brasileiro. “Nosso programa é um dos maiores e mais amplos do mundo em termos de reparações econômicas, um dos mais criativos em termos de reparação moral, combinando pedidos oficiais de desculpas, escutas públicas, projetos de memórias, Caravanas e agora passa a também contar com essa nova dimensão de atenção.”
As Clínicas do Testemunho foram concebidas após diversas reuniões com especialistas do Cone Sul e distintas organizações sociais e que apontaram esta carência no sistema de reparações. A Comissão de Anistia organizou audiências com diversos especialistas brasileiros, e uma oficina, no Rio de Janeiro, com profissionais que atuam nos programas de atenção à vítimas da violência de Estado na Argentina e Uruguai.
“O principal resultado que os programas têm demonstrado é a melhora do bem-estar daqueles que foram vítimas de violações graves contra os direitos humanos, e também de seus familiares. Traumas decorrentes da tortura, de estupros, ou do desaparecimento e assassinato de entes familiares são muito graves, muito complexos, e transcendem a própria vítima. Daí esta necessidade de construir um programa amplo.”
O prazo inicial para a política é de dois anos. Durante esse período, ela será avaliada e eventualmente expandida. Destinada a quem foi considerado oficialmente anistiado político pelo governo, a assistência exclui, portanto, integrantes da repressão – ou parentes seus – que se sentem psicologicamente prejudicados pelo que ocorreu durante o regime autoritário. O processo de inscrições começou nesta terça (19) e se estende até o próximo dia 6 de abril.
Para Paulo Abrão, o programa de reparações brasileiro tem sido o eixo estruturante de nossa Justiça de Transição. Pelas próprias características do processo de redemocratização fortemente controlada do Brasil – através de uma transição “lenta, segura e gradual” –, o único dos chamados “direitos da transição” incorporado na Constituição de 1988 foi a reparação. Ele lembra que durante a Constituição de 1988 os debates sobre justiça, memória e verdade foram bloqueados.
“Alguns analistas mais apressados costumam apontar que isso foi um erro, que “monetarizou” o sofrimento. Desde minha perspectiva, foi o contrário. As comissões de reparação – a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos de 1995, e a Comissão de Anistia de 2002 – foram conquistas da sociedade civil, que soube se aproveitar destes espaços. As comissões passaram a reconhecer as violações do regime, transversalmente promovendo o direito à memória e à verdade. Mais ainda, tornaram-se novos atores institucionais dentro do Estado, levando a voz das vítimas para espaços que antes não eram alcançados.”
Abrão enfatiza que foi justamente essa combinação de revelação da verdade, promoção da memória e articulação institucional – entre espaços progressistas no Estado e a sociedade civil – que possibilitou que outras inovações institucionais fossem obtidas, como a conquista da aprovação da Comissão Nacional da Verdade.
“O fato de termos começado pelas reparações foi, assim, uma forma de furarmos o bloqueio imposto pelo regime, reconhecermos fatos e direitos, e permitirmos que a agenda avançasse. Ainda há muito por fazer, tanto nas reparações, quanto nas demais dimensões de nossa Justiça de Transição, mas é um fato que hoje vivemos um momento de avanços sem precedentes na história recente de nossa democracia.”
Os interessados deverão enviar, pelo e-mail clinicas.testemunho@mj.gov.br, uma ficha à Comissão de Anistia que julga pedidos de reparação econômica. No caso haver mais inscritos do que vagas, a comissão usará como critério em sua escolha a natureza da violação sofrida durante a ditadura (mortes, torturas, desaparecimentos e prisões arbitrárias). Para desempatar pedidos serão usadas a idade, condição econômica e, em último caso, a ordem de inscrição.
Fonte – Vermelho