Segunda reportagem sobre integrantes das Forças Armadas punidos pela ditadura mostra história do coronel do exército Kardec e seu filho, Luiz Carlos Teixeira Lemme, perseguidos por meras suspeitas
O coronel Kardec Lemme, quando ainda era considerado ‘herói de guerra’ e hoje, sobrevivente de um período de intolerância (Fotos: arquivo pessoal e Daniella Cambaúva)Luiz Carlos Teixeira Lemme, engenheiro aposentado, é quem conta a história de seu pai, o coronel Kardec Lemme, cujo nome aparece na primeira lista de cassações feita pela ditadura militar brasileira. Conversou com a reportagem na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no centro da cidade do Rio de Janeiro. No décimo andar daquele prédio – “o mais badalado da rua Araújo de Porto Alegre” como descreveu ele –, funciona a Associação Democrática e Nacionalista de Militares (Adnam), entidade que reúne membros das Forças Armadas perseguidos depois de 64.
Kardec Lemme, membro da Adnam, não está presente na entrevista por conta de imposições da idade. É Luiz Carlos quem tem guardada na memória a história do pai. Sua trajetória de filho, porém, não é menos dramática, pois também foi perseguido. “Tive uma vida normal de estudante, com um pai servindo no Ministério da Guerra, até 1964”, diz.
À época, ele tinha 15 anos, estudava no Colégio Militar e morava com os pais e a irmã no edifício Havana, em Copacabana, o mesmo onde até hoje Kardec vive. O primeiro ato da ditadura se deu antes mesmo de o golpe se consolidar: na noite de 31 de março para 1° de abril, quando houve o golpe. “Eles – na época eu nem sabia quem eram – invadiram a nossa casa. Encostou um camburão, um carro preto, chapa branca, tinha umas grades atrás. Eles subiram, se colocaram na escada, em possíveis rotas de fuga e entraram com armas ostensivas: ‘Coronel Kardec, está preso!’”.
Luiz Carlos lembra de ter sido, junto da irmã e da mãe, afastado para a parede. A mãe foi impedida de usar o telefone e o o pai era chamado de “comuna safado”. De lá, levado para a fortaleza Santa Cruz, em Niterói. “Essa fortaleza tem um lugar cavado na pedra. Então tem um lugar onde a água sobe e entra água na cela. Foi lá que ele foi interrogado.”
Luiz Carlos desconhece ligações de seu pai com o Partido Comunista. A fama veio do final da Segunda Guerra, quando Kardec serviu na Itália. Desde então passou a ser chamado de “piloto vermelho” e foi caracterizado como próximo à teoria marxista porque admirou, durante o conflito, a luta dos soviéticos. “Quando foram prender meu pai, disseram ‘onde esse comuna podia estar?’ Só podia ser no edifício Havana”, conta, rindo. O prédio foi pichado pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC) inúmeras vezes naquele período.
Em Santa Cruz, o coronel ficou incomunicável por um tempo. “O artifício que a gente usava para contar pra ele o que estava acontecendo…a gente pegava uma laranja, cortava um pedacinho da casca, pegava uma fitinha de papel, redigia e enfiada dentro da laranja. Repunha a casca e esperava um dia para a resina da própria laranja soldar”, recorda.
Assim que saiu, descobriu que havia sido expulso do Exército na lista das primeiras cassações pelo Ato Institucional n° 1. De 1964 até 1985 ele foi preso quatro vezes. E em todos os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) foi absolvido por falta de provas.
Luiz Carlos Lemme, o filho: mágoas sim, vingança não
“Ele foi preso pelas razões mais estapafúrdias. Uma vez um grupo de chineses estava em uma missão e alguém disse que eles vinham ao Brasil para trazer dinheiro e fazer uma revolta sino-comunista. Aí resolveram prender Kardec Lemme. Ele nem falava chinês, os chineses não falavam português. Eles sequer conseguiam se comunicar”, conta.
Kardec nunca revelou se foi torturado, mas Luiz lembra de ter visto, mais de uma vez, as camisas chegarem em casa rasgadas e com secreção quando ele foi preso pela primeira vez. Demitido, seu pai foi trabalhar como autônomo, trabalhou como guia de turismo e na construção civil. “Em qualquer lugar que ele chagasse e se identificasse era afastado como um leproso. Foram anos difíceis, inclusive para sobreviver, para um militar, que sabia ser militar.” Sua mãe trabalhava na Assembleia Legislativa e lá ficou até se aposentar.
Preso pela filiação
Em 1966, Luiz Carlos estava na sala de aula quando foi levado pelos militares. Seu pai estava preso pela segunda vez, no quartel da rua Barão de Mesquita, na Polícia do Exército – o mesmo por onde passou o comandante Paulo Henrique Ferro Costa – e ali ficou por 40 dias. “Me falaram: você está preso para averiguações”, conta. “Medo? Eu tive muito medo. Não sabia que averiguações eram essas. Meu pai estava preso…”
A mãe o procurou, mas não permitiram que ela falasse com ele por nove dias. “Eles acordavam entre duas e três horas da manhã, me levavam para a pracinha central do colégio militar, como eu estivesse, botavam uma luz, batiam na minha barriga, montavam aquele cirquinho, me perguntavam e diziam isso ‘você é pombo-correio do Kardec’”.
Cinquenta anos depois, a lembrança daqueles dias é forte: “Tudo o que eu dizia era usado contra mim. Tudo o que eu falava. O existir era usado contra mim porque eu era filho de um inimigo da ditadura”, afirmou.
No nono dia, sua mãe conseguiu conversar com o general Peri Bevilacqua e contou a situação. Ele mostrou indignação e mandou soltar o menino. Bevilacqua, de posição legalista, foi afastado dois anos depois com o Ato Institucional número 5, o AI-5.
Assim como seu pai, ele nunca foi filiado ao Partido Comunista, também não foi para a luta armada, e defende “soluções brasileiras para a realidade brasileira”. Depois do fim da ditadura, Luiz Carlos foi apenas uma vez rapidamente ao local com Modesto da Silveira, advogado de seu pai, para solicitar documentos. Sentiu-se mal, não conseguiu ficar no lugar. E foi naquela ocasião que descobriu que os registros de sua estada na prisão haviam sido apagados.
Luiz Carlos e seu pai defendem que os repressores sejam identificados. Argumentam que criminosos, onde quer que estejam, devem pagar por seus crimes. Ele ressalta, porém, que não se pode falar em vingança ou revanche. “Nenhum dos dois quer vingar. Eu não tenho o menor interesse de ir atrás deles para me vingar. Não se pode dizer ‘Agora que tem a Comissão da Verdade nós vamos pegar vocês!’”, ironiza.
Ainda que a filiação – paterna, não a partidos políticos – fosse a razão de uma perseguição que durou 21 anos, não há espaço para mágoa ou vergonha entre Luiz Carlos e seu pai. “Tenho orgulho do meu pai. Ele vai ter que ganhar seu busto em algum lugar. Até a forma como ele escolheu para viver, para nos tratar, os filhos. Podia ter feito de nós, eu e minha irmã, dois repetidores, dois papagaios, ou mesmo pombos-correio. Ele sempre nos protegeu”, diz.
Fonte – Rede Brasil Atual