Escutar a verdade: devem os psicanalistas se envolver com política?

“O psicanalista não pode se furtar à tomada de posição política dentro dos discursos que tecem o ethos de sua sociedade”

Em outubro de 2010 a psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida do Estado de S. Paulo. O motivo, segundo ela, foi um “delito de opinião” no artigo “Dois pesos” no qual deixa claro sua posição política em meio ao debate nas últimas eleições presidenciais. A justiça não tardou: Maria Rita Kehl foi nomeada integrante da polêmica Comissão da Verdade.  

Atuando na clínica psicanalítica desde 1980, realiza também atendimentos gratuitos para o MST de São Paulo. Seu longo histórico de resistência ao regime militar teve papel relevante na crítica ao pretenso processo de “reconciliação” da Lei da Anistia de 1979. Vale lembrar que no Brasil os crimes cometidos pelo Estado no regime militar nunca foram realmente passados a limpo. Sabe-se que esse fato está diretamente relacionado à realidade de ser o Brasil um dos únicos países em que a violência policial só aumentou desde o do fim da ditadura.

Sua nomeação reabre uma velha polêmica: devem os psicanalistas se envolver com política? Afora o psicanalista Slavov Zizek, que foi candidato à presidência de seu país, conheço poucos que ousam expor sua posição política. No entanto, não tomar parte na política já é, sim, uma lamentável posição política: um autêntico recalque político!

O retorno do recalcado apresenta-se, pelo menos, de duas formas: cinismo disfarçado de lucidez e má vontade política fantasiada de rigor teórico. O espírito burguês, berço da Psicanálise, contamina até hoje as fantasias de jovens analistas com o sonho de seu belo consultório. Muitos não abrem mão do sonhado divã e de sua dignidade burguesa. Entretanto, o psicanalista não pode se furtar à tomada de posição política dentro dos discursos que tecem o ethos de sua sociedade.

Lacan advertiu que, antes, renuncie ao ofício de psicanalista quem não puder alcançar o horizonte de sua época. Infelizmente, a ortodoxia sobrepujou a originalidade e a psicanálise nem sempre escutou sua sociedade. O momento é mais que propício para que psicanalistas se posicionem e assumam seu dever ético para com um projeto de nação brasileira. Quem pode melhor escutar os traumas de nossa recente história?

A presença de Kehl nesta comissão me faz lembrar um famoso texto de Freud que resume bem o momento que vivemos como nação: “recordar, repetir e elaborar”. Uma psicanalista nessa comissão atesta que não se pode esquecer o passado, mas podemos revisitá-lo e com ele ressignificar nosso presente. A verdade não liberta?

 

Fonte – Rafael Pinheiro – rafpinheiro@gmail.com – Psicólogo e mestrando em Psicologia (Unifor)

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