A Comissão da Verdade vai ser à brinca ou à vera?

Quase seis meses depois de aprovada, a Comissão da Verdade foi, afinal, nomeada. Demorou, mas foi o preço pago para obter um amplo consenso, o que já se evidenciara nos debates que resultaram na lei que a constituiu.

A Comissão vai ter que lidar com suas condições. Inquieta a dependência do governo. Disse o ministro Gilson Dipp, designado, não se sabe por quem, porta-voz da Comissão, que a presidente Dilma Rousseff “deu liberdade absoluta e total” para o grupo. Ora, quem “dá” pode “tomar”. Por outro lado, anunciou-se que a chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, vai acompanhar “de perto” os trabalhos. Não seria melhor que ela ficasse “de longe”, garantindo à Comissão uma indispensável autonomia?

O escopo da Comissão preocupa igualmente. A lei previu que as investigações devem cobrir o período que vai de 1946 a 1988. Uma concessão clara aos partidários da última ditadura, feita para inviabilizar trabalhos previstos para um prazo máximo de dois anos. No entanto, alguns membros da Comissão já se dispõem a ignorar este mandamento da lei, sugerindo que o “foco principal” seja a “ditadura militar”.

Em outros aspectos, contudo, a lei será “intocável”: a comissão não se preocupará com “punições”, nem questionará a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que estendeu a anistia aos torturadores. Unindo governo e comissão, sugerindo prévias combinações, o coro também é afinado na afirmação de que “não haverá revanchismos”, outro mote, repetido para afagar o corporativismo das Forças Armadas e sua visceral ojeriza, evidente até hoje, a contribuir para o esclarecimento dos crimes cometidos por seus oficiais e demais agentes da ditadura.

 

 

 

A preocupação com o “revanchismo”, cuja existência não se demonstra, mas que é sempre necessário exorcizar, enraíza-se na idéia da “guerra suja”. Trata-se de uma fórmula usada não apenas no Brasil, mas também na Argentina, no Uruguai e no Chile. É simbólico que ela tenha aceitação aqui e quase nenhuma entre os vizinhos. Decorre daí que dezenas de oficiais das Forças Armadas naqueles países estejam na cadeia ou sendo objeto de processos judiciais, enquanto em nosso país permaneçam cobertos pelo manto da impunidade.

Os autores da idéia da “guerra suja” querem fazer acreditar a versão de que houve no país um enfrentamento de grandes proporções, onde teriam se batido “dois lados”. No entanto, o Brasil não conheceu nenhum conflito desse tipo. Ocorreram aqui algumas dezenas de ações armadas – uma guerrilha – informadas por um projeto revolucionário, que, em sua diversidade (havia muitas – pequenas – organizações), tinham em comum a tentativa de derrubar a ditadura e destruir o sistema econômico que era seu fundamento – o capitalismo. O projeto não encontrou respaldo na sociedade. E seus adeptos foram massacrados pelo Estado brasileiro – presos, torturados, mortos e exilados. Nesse massacre, as Forças Armadas, através do emprego sistemático da tortura, destruíram seus “inimigos”. Mas não existiram “dois lados” em luta, como num combate convencional, ou numa guerra popular de guerrilhas. Houve, sim, o Estado contra algumas centenas de revolucionários numa luta extremamente desigual, onde oficiais das Forças Armadas e policiais civis cometeram crimes de lesa-humanidade. São esses crimes que, agora, a Comissão tem a missão de investigar e elucidar.

E aí haverão de aparecer os torturadores. De forma clara e oficial. As atrocidades, infelizmente, não foram cometidas nem pelo Diabo, nem por “monstros”, mas por seres humanos. Eles, como responsáveis diretos, têm contas a prestar, porque, segundo tratados internacionais assinados pelo Brasil, praticaram crimes imprescritíveis.

 

 

Entretanto, e aí o trabalho da Comissão pode ser igualmente decisivo, os torturadores não deveriam ser apontados como “bodes expiatórios”. O trabalho sujo que fizeram não foi “um excesso”, nem um “desvio”, mas o resultado de uma política de Estado, e seria esclarecedor conhecer a chamada “cadeia de comando”: de onde, quando e como vinham as ordens ou as autorizações para a prática das torturas. Eis um nó difícil de desatar. Porque não estarão mais em jogo – ou no banco dos réus – algumas dezenas de assassinos, mas cidadãos supostamente acima do bem e do mal, presidentes da república, ministros, comandantes e associados. Sem falar em outros “homens honrados”, como, por exemplo, os empresários que financiaram a máquina repressiva.

Finalmente, a Comissão tem o desafio de lançar à discussão da sociedade a tradição sinistra da tortura. Desgraçadamente, não foi a última ditadura que a inventou. Vem de longe – dos tempos coloniais e da escravidão. Foi usada por uma outra ditadura – a do Estado Novo, liderada por Getúlio Vargas, entre 1937 e 1945 – que também recorreu à tortura como política de Estado. E basta abrir os jornais para constatar que a infame prática continua bastante naturalizada e aceita como “recurso” por vários segmentos da sociedade brasileira.

Os torturadores, a tortura como política de Estado e a tortura como tradição. Tratar das três questões, entrelaçadas, seria um trabalho à vera e não à brinca. A Comissão da Verdade terá as condições – e a vontade – de fazê-lo?

 

Fonte – O Globo

 

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