Apesar do atraso de décadas para começar a revisar os crimes da ditadura, a advogada pernambucana Rosa Cardoso da Cunha, mestre em direito penal, que integra a Comissão Nacional da Verdade (CNV), diz não se sentir ansiosa com a tarefa que tem pela frente. A revista Isto É realizou uma entrevista com a advogada que o Portal Vermelho reproduz abaixo:
Rosa Cardoso, integrante da Comissão da Verdade
Responsável por apurar o envolvimento das empresas no patrocínio do golpe militar de 1964, Rosa precisa organizar as informações levantadas até aqui a respeito do assunto e monitorar os documentos de novos acervos disponibilizados para a CNV. “Foram investidos muitos recursos por empresários brasileiros para que o golpe se mantivesse”, afirma Rosa.
A identificação de empresas que forneciam listas negras, com os nomes de trabalhadores suspeitos de subversão, aos órgãos de controle do governo pode vir a gerar processos na Justiça. “O fato pode ser submetido à Corte Interamericana”, diz Rosa.
Isto É – A Comissão Nacional da Verdade trabalha com a linha de que o golpe de 1964 não foi só militar, mas também civil. Onde entram as empresas?
Rosa Cardoso – Estamos focando nessa explicitação do elemento civil do golpe, caracterizado inicialmente como somente militar. Um golpe custa muito caro, e entraram muitos recursos americanos naquela época, somente para financiar campanhas eleitorais estaduais. Às vésperas do golpe, teriam sido US$ 10 milhões. Mesmo assim, os candidatos da direita perderam as eleições, e aí começou uma movimentação desenfreada de empresários brasileiros da indústria e da área financeira, ligados a grupos multinacionais, que tinham interesse em conquistar espaço político. É também o caso de grandes empreiteiros. Foram investidos muitos recursos. Os empresários se organizaram principalmente ao redor do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), criado em 1961, que atuava contra o presidente João Goulart.
Isto É – Houve grupos organizados de empresários que trabalharam de forma articulada na época?
Rosa Cardoso – Houve ação de muitas entidades de classe, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a Associação Comercial do Estado de São Paulo, além do Clube de Lojistas e do Senai do Rio de Janeiro. Temos, ainda, as federações de indústrias de Minas Gerais e do Rio Grande do Sul. E nomes de empresários como Augusto Trajano de Azevedo Antunes, (fundador da mineradora Caemi, e patrocinador do Ipes) e Celso Melo de Azevedo, que presidiu a Cemig entre 1961 e 1965. E, ainda, Henning Boilesen, presidente da Ultragaz, da família Igel. Nomes já identificados no livro do professor uruguaio Rene Dreyfus (A conquista do Estado, lançado em 1981), que na época não foi tão importante, e depois se tornou um livro de referência para o estudo do elemento civil.
Isto É – São personagens que apoiaram o golpe de 1964 ou o aparato repressor também?
Rosa – Estamos investigando o financiamento do golpe e o financiamento da repressão. Já temos alguns documentos, apontando que o comércio e a indústria na época se ofereceram para dar apoio ao governo. Luiz Macedo Sampaio Quentel, representante da Fábrica de Motores, amigo do general José Canabarro, comandante do II Exército, no final dos anos 1960, construiu instalações militares, tendo livre trânsito nos quartéis. A CNV dispõe de um documento, que exibirá oportunamente, no qual o general manifesta sua gratidão a um grupo de empresários.
A quais empresários ele agradece, e qual seria a participação deles?
Alguns deles são: Luiz Pinto Thomas, diretor-presidente da Indústria Metalúrgica Nossa Senhora Aparecida e ligado à Sul Americana de Investimentos e à corretora de câmbio Trefil Satora; Roberto Selmi Dei, presidente da Moinho Selmi Dei Indústria e Comércio, ligado à Mercantil Agropecuária de Araraquara SA; José Kalil, diretor-presidente da José Kalil SA; Sebastião Camargo, da Construtora Camargo Corrêa SA. Eles colaboraram na construção do 2º Batalhão de Polícia do Exército (PE), unidade criada à época, e na ampliação da 2ª Companhia da PE. Teriam ajudado a construir um aparato de exercício do poder repressivo, a sede de organismos que se envolveram na repressão política. Buscamos documentos para ter isso registrado, e não somente relatos que geraram filmes e livros até agora.
Quem a CNV deve chamar a depor sobre a participação das empresas na ditadura?
A partir de maio, vamos começar a chamar diversas pessoas. Num primeiro momento, queremos ouvir empresários. Vamos ouvir também Paulo Egydio Martins (governador de São Paulo entre 1975 e 1979), que já declarou ter nomes de empresas que participaram. Também o ex-ministro Delfim Netto e o empresário Paulo Sawaya, apontado como um arrecadador de recursos junto ao empresariado paulista. Vamos trabalhar com literatura que tenha comprovação. Há teses acadêmicas atuais, feitas sobre o papel de muitas empreiteiras durante o governo militar. A ideia é garantir provas documentais ou testemunhais.
(foto: O presidente da Ultragaz, Henning Boilesen, em 1965)
Pode haver nomes novos de empresários que ainda não eram considerados publicamente ligados à ditadura?
Sim, há muitos acervos que não foram vistos ainda, acervos particulares que não eram procurados. No Arquivo Nacional, há ainda documentos que não foram digitalizados. As próprias vítimas da ditadura têm muito material, e ainda há os acervos da classe empresarial. Veremos aí não só a participação do empresariado, financiando o golpe e o governo militar, mas também os empresários que perseguiram trabalhadores, que criaram listas negras, entregues aos órgãos de segurança da época. É o caso da Cobrasma, do ex-presidente da Fiesp, Luiz Eulálio de Bueno Vidigal, de Osasco, e da Tecnoforjas, na zona leste de São Paulo, além de muitas empresas do ABC. Há documentos, com endereços residenciais, a seção em que determinada pessoa trabalhava, que tipo de carro possuía, indicando que seria suspeito de atividade subversiva.
Um dos casos mais emblemáticos de participação de um representante do setor privado durante a ditadura é o do presidente da Ultragaz, o executivo dinamarquês Henning Boilesen, que é inclusive apontado como frequentador assíduo de sessões de tortura. Pode haver casos de outros empresários que tenham tido atitudes como essa?
O empresário que sai da sua empresa para ir assistir tortura é um psicopata. Que ele seja de direita ou de extrema direita, considerando que defendia sua propriedade, financiando órgãos de repressão, certamente já demonstra cumplicidade. Mas o nível de compromisso é maior no caso de Boilesen. Não podemos, antes de ter pelo menos duas pessoas depondo, afirmar que de fato haja outros casos semelhantes. Mas a Comissão Rubens Paiva, por exemplo, trabalhou com livros de entrada do Dops e descobriu visitas frequentes de um agente do consulado americano em São Paulo, Mr. Halliwell, bem como de um representante da Fiesp, o senhor Geraldo Resende de Matos, que permanecia por longas horas naquela delegacia, um espaço onde havia muita tortura. A Fiesp já disse que ele não era representante da entidade, mas o senhor Resende de Matos se apresentava como tal.
E a perseguição dos sindicatos de trabalhadores?
Houve muitas pessoas perseguidas, incluídas em listas negras, para que não pudessem trabalhar, demitidas por suspeitas políticas, de modo que foram distanciadas da vida produtiva. É o caso de funcionários das fábricas de bicicletas Monark e Caloi, por exemplo.
Fichas de empregados “agitadores”, enviadas ao Dops pela Tecnoforjas (imagem)
A Comissão da Verdade identificou também a atuação de empresas que financiaram ditaduras em outros países do continente?
Sabemos que elas existiram e que trabalhadores demitidos e empresas cujas propriedades foram expropriadas organizaram-se para reivindicar seus direitos. Na Argentina e no Chile, esse processo foi mais célere porque as Comissões da Verdade foram montadas rapidamente no período de redemocratização. Queremos ver os precedentes para que trabalhadores ou mesmo empresários perseguidos, como os donos da Panair (cuja concessão foi cassada, pois seus sócios, Celso Miranda e Mario Simonsen, eram contrários ao regime), possam ir à Corte Interamericana.
Muitas empresas que apoiavam o apartheid na África do Sul foram processadas por funcionários que se sentiram perseguidos. É possível haver algo dessa natureza no Brasil?
Se ficar comprovada a perseguição de grupo, e não individual, com motivação política, o fato pode ser submetido à Corte Interamericana. Se houver lesa-humanidade, e sendo revogada a Lei da Anistia, pode haver, sim, administradores e diretores que sejam não só responsabilizados, mas também processados. Tem de se caracterizar perseguição de grupo, com conotação política. Isso tem que ser entendido como um crime de lesa-humanidade, para que autores de violências sejam processados criminalmente.
Que tipo de punição será possível aplicar a empresas depois de tanto tempo?
Uma empresa pode, sim, ser responsabilizada pela CNV, e não implicar, necessariamente, processo criminal. Não é preciso responder com uma pena privativa de liberdade. O direito penal tem um rol de outras penalidades, mas isso depende de algo que ainda não existe na realidade brasileira. Fora os casos de desaparecimento de pessoas ou funcionários, quando aí a investigação do crime está em curso e não há anistia para eles.
O modo como o Brasil trata a corrupção, com as empresas aparecendo como vítimas e não agentes, pode ser uma herança desse período?
É notável que a ditadura tenha sido justificada à época como um elemento contrário à subversão e à corrupção. Porém, ela cresceu fortemente na ditadura. E como convivemos com o chamado entulho autoritário, houve uma continuidade em formas de organização, inclusive da vida política. Essa forma de corrupção mais recente ainda está enlaçada com o governo militar.
Fonte – Isto É Dinheiro