Em audiência pública realizada no dia 19, a Comissão da Verdade refez a história das ossadas. Após serem encontradas, elas foram levadas para estudos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob coordenação do legista Fortunato Badan Palhares. Como havia (e ainda há) uma falta de profissionais capazes de identificar corpos no Brasil, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos solicitou, ainda em 1990, a ação de um grupo de antropologia forense argentina para auxiliar no processo. O pedido foi negado pela Unicamp, que assumiu sozinha os estudos iniciais. Nenhum corpo foi identificado e, mais tarde, os restos mortais foram encaminhadas para o Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), na época dirigido por Daniel Romero Muñoz.
Só em 2013 a identificação começou de verdade, quando tiveram início os trabalhos do Equipo Argentino de Antropologia Forense (EAAF), agora responsável pelas ossadas. “Vimos uma metodologia equivocada por parte da universidade”, diz a antropóloga argentina Patrícia Bernardi, integrante do EAAF. Segundo ela os estudos realizados no Brasil até então se valeram de “metodologia escassa, confusa e que não chega a resultados conclusivos. São estudos meramente descritivos.” Ainda segundo a especialista argentina, “as fichas [de identificação] não se mostram confiáveis, então o trabalho deve ser feito do zero”.
Um dos exemplos da bagunça promovida pelo Estado e entregue ao EAAF é a busca pela identificação do militante Hiroaki Torigoi. Havia uma identificação de que sua ossada estaria em um grupo previamente separado, a partir de características compatíveis com o corpo de Torigoi. Os argentinos descobriram que, na verdade, dentro do material estava 22 ossadas diferentes, sendo que quatro delas pertenciam ao sexo feminino e outras 14 eram de adultos com mais de 35 anos. Torigoi foi morto aos 27. Isso já eliminaria do grupo 18 ossadas, que de forma alguma poderiam ser de Torigoi. “A pré-seleção feita pelos pesquisadores estava completamente equivocada”, constatou o grupo. Exames de DNA foram realizados nas ossadas que continham características semelhantes ao de Torigoi, mas nenhum foi compatível.
“Foram cometidos erros primários, como não separar os corpos de homens e de mulheres”, diz Amélia Telles, integrante da comissão de familiares dos desaparecidos. “Nós estamos vendo que há uma negligência por parte do Estado e de suas instituições, que já perdura bastante tempo”, diz.
Dados de livros de registro apontam que pelo menos seis corpos de ex-militantes mortos pela ditadura estão no grupo de mais de mil ossadas, mas a Comissão de Familiares acredita que o número possa chegar a quinze, já que muitos corpos eram enterrados com nomes falsos para dificultar a identificação. Segundo Amélia Telles, no atestado de óbito, os presos políticos eram identificados por uma letra T. “Era a forma como a repressão identificava os presos políticos, o T era de terrorista. Já era uma senha para que o próprio funcionário, tanto do Instituto Médico Legal quanto do serviço funerário, ocultasse o cadáver”.
Até aqui, a equipe argentina conseguiu identificar os corpos de três ex-militantes. São os de Dênis Casemiro, assassinado em 1971, no Dops de São Paulo; Frederico Eduardo Mayr, sequestrado pela Operação Bandeirante em 24 de fevereiro de 1972; e Flavio de Carvalho Molina, morto aos 24 anos, em 1971, em São Paulo. As outras mais de mil ossadas continuarão sendo analisadas, mas não será necessário fazer exame de DNA uma a uma, apenas nas que se enquadrarem dentro das características dos militantes mortos. A continuação depende da manutenção do financiamento feito pela Associação Brasileira de Anistiados Políticos.
Contatada, a Unicamp disse que o legista Fortunato Badan Palhares não trabalha mais na Faculdade de Ciências Médicas e que, portanto, não poderia prestar esclarecimentos sobre o assunto. A USP declarou que o responsável pelo departamento estava em um evento fora de São Paulo e mais tarde entraria em contato.
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Fonte – Carta Capital