Pressões da estupidez e acordos feitos no passado podem frustrar uma investigação que já começa tarde
“Assim como respeito e reverencio os que lutaram pela democracia enfrentando bravamente a truculência ilegal do Estado, e nunca deixarei de enaltecer esses lutadores e lutadoras, também reconheço e valorizo pactos políticos que nos levaram à redemocratização”.
A emoção levou Dilma às lágrimas. O momento exige também atitudes.Presidente Dilma Rousseff, na instalação da Comissão da Verdade, em 16 de maio de 2012.
“O destino daquela bomba era o palco. Tratava-se de um artefato de grande poder destruidor. O efeito da carga explosiva no ambiente festivo, onde deveriam se apresentar uns oitenta artistas famosos, seria devastador. A expansão da explosão e a onda de pânico dentro do Riocentro gerariam consequências desastrosas. Era evidente que muitas pessoas morreriam pisoteadas.”
Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS que participou do atentado em 30 de abril de 1981, e de outras operações criminosas, cujas revelações em livro já lhe valeram uma tentativa de execução na madrugada do dia 16 de maio de 2012.
• Sejamos honestos: essa Comissão da Verdade já veio tarde, está cheia de dedos, pisando em ovos, e, como tudo neste país, pode tropeçar nas próprias pernas e limitar-se a um apanhado conveniente do que já é público e notório, oferecendo à história uma caricatura do que seria uma devassa necessária com efeitos profiláticos em relação ao futuro: porque a seus integrantes impõem a prática dos equilibristas com tais recomendações e tais constrangimentos que serão fatalmente compelidos a saírem pedindo desculpas aos esbirros da tirania que meteu os pés pelas mãos, rasgou a Constituição adolescente de 1946 no furor dos atos institucionais, abusou do arbítrio, prendeu, cassou, exilou, torturou, sequestrou, matou, ocultou cadáveres, censurou a imprensa, calou a verdade a ferro e a fogo, semeou o medo, cultivou a cumplicidade, raspou o cofre e travou a vida inteligente, tudo para servir às ordens de uma potência corruptora que fez vítimas em todo o Continente para vingar-se dos seus fracassos nas tentativas de cortar as cabeças dos intrépidos invictos de uma ilha vizinha.
• Essas constatações óbvias não podem ser entendidas como um desestímulo ou uma desaprovação. As lágrimas da presidente Dilma merecem consideração. O esforço platônico de alguns bem intencionados não pode ser desmerecido. E a própria institucionalização da busca de alguma verdade pode ter desdobramento: se realmente for a fundo, essa comissão demonstrará que não basta pretender ilustrar os anais: algum tipo de corretivo há de ser sugerido, como aconteceu na Argentina e no Chile, onde os verdugos foram devidamente punidos com penas exemplares, como a prisão perpétua para os chefes da ditadura argentina.
As belas palavras e as boas intenções são muito pouco diante da monstruosidade de duas décadas em que o Estado militarizado fez mais do que vítimas fatais entre oponentes movidos pela utopia.
Seus crimes não se circunscreveram ao desaparecimento dos corpos de centenas de executados em seus porões, atos que são por si corpos de delito da sanha mórbida e doentia: naqueles idos, os agentes da repressão pagos pelos contribuintes tinham que esconder seus malfeitos até mesmo da maioria da tropa, até mesmo da opinião pública da matriz, ora simulando “mortes em combates”, ora sumindo com os corpos dos adversários, porque, nem entre eles digeriam-se as execuções covardes.
É certo que já se passaram décadas da escalada mortífera. É igualmente certo que o questionamento do regime de sevícias não ecoa mais como antes. A insegurança diante da própria luta pela sobrevivência e o desmonte do descontentamento através de políticas compensatórias produziram um clima da mais resoluta acomodação. De tal monta é a estupidez generalizada que ao juízo das novas gerações, com as exceções inevitáveis, toda essa polêmica soa como tempo perdido.
A liberdade de que desfrutamos hoje produz o paradoxo da epidemia acrítica. Reviver o rito da ditadura em toda a sua trajetória perversa afigura-se como uma obsessão de quem ainda padece das dores pessoais, em função do acontecido a seus entes queridos. Daí entender-se a busca da verdade apenas como a revelação das valas onde os criminosos da repressão ensandecida ocultavam cadáveres das vítimas dos seus suplícios. E de mais não se cogita.
A sociedade massificada e imbecilizada não tem olhos e ouvidos para entender a gravidade de um delito praticado por agentes do Estado, mesmo aqueles que atuavam acreditando na legitimidade de um poder forjado na usurpação de um golpe militar.
Não é por acaso que os defensores da brutalidade falam da “violência dos dois lados”, e em “meias verdades”, num discurso cínico que, no entanto, encontra adesões entre os desavisados e os cronicamente susceptíveis à manipulação da paranóia histórica.
A cronologia dos acontecimentos deveria ser o ponto de partida da insofismável busca da verdade.
Uma cronologia que começa com a conspiração que levou ao suicídio do presidente Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954, e passa pela tentativa de golpe para impedir a posse do presidente Juscelino Kubitscheck, abortada pelo general Teixeira Lott em 11 de novembro de 1955, e por dois levantes militares em seu governo, um dos quais liderados pelo então major João Paulo Moreira Burnier, anistiado por JK, que seria um dos mais cruéis assassinos da ditadura.
A partir do momento em que, agindo por encomenda, generais das três armas decidiram macular as fardas com a deposição de um presidente eleito e legitimado por um plebiscito inédito, que lhe conferiu a aprovação de 80% dos cidadãos, a sequência de ilegalidades fez-se matriz dos crimes perpetrados nos porões de uma repressão movida a monstruosidades.
Que só não causaram mais sofrimento porque havia resistência na tropa, como aconteceu quando o já brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, que comandou pessoalmente a tortura e morte do estudante Stuart Angel Jones, quis envolver pára-quedistas da Aeronáutica na explosão do gasômetro do Rio de Janeiro, imaginando milhares de mortes que seriam atribuídas aos opositores, hecatombe que só não aconteceu pela atitude corajosa do capitão Sérgio Ribeiro Miranda Carvalho e pela interferência do brigadeiro Eduardo Gomes, ícone da direita militar, que teve um acesso de lucidez e levou a trama ao conhecimento dos seus pares, numa carta em que acusava seu colega de farda de ser “um insano mental inspirado por instintos perversos e sanguinários, sob o pretexto de proteger o Brasil do perigo comunista”.
Capitão Sérgio Carvalho evitou morticínio planejado pelo brigadeiro Burnier e foi cassado pelo AI-5
Colega que, mesmo insano, após o morticínio frustrado, chegou ao comando da III Zona Aérea, enquanto o capitão Sérgio Ribeiro Miranda Carvalho era cassado pelo AI-5, protagonizando depois um episódio típico da ditadura insepulta: em 1992, o STF reconheceu seu direito à promoção, mas o ministro da Aeronáutica de então, brigadeiro Lélio Lobo, não tomou conhecimento da decisão e o então presidente Itamar Franco, como bom covarde, preferiu empurrar o caso com a barriga.
“Sérgio Macaco”, como era conhecido por sua destreza como pára-quedista, morreu em 1994 sem ver respeitada a decisão judicial. Em 1997, sua filha recebeu míseros R$ 82.907,15 como indenização pela perseguição que o pai sofreu por se recusar a ser um assassino fardado.
É profundamente lamentável que essa Comissão da Verdade, em nome do que é possível, esteja sob o cerco dos poréns, e, assim como não irá vasculhar a trama diabólica do brigadeiro Burnier, também deverá passar ao largo de outra monstruosidade cometida já nos estertores da tirania – o atentado do Riocentro, que poderia ter enlutado milhares de famílias naquele 30 de a abril de 1981, quando uma poderosa bomba explodiu no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, matando-o na hora, e ferindo gravemente o capitão Wilson Luis Dias Machado, seu parceiro, mais tarde promovido a coronel, feito professor do Colégio Militar de Brasília até 2010, e depois contratado pelo IME no Rio de Janeiro.
Nessa irresponsável tentativa gratuita de genocídio, sabe-se agora, pela revelação de um dos seus participantes, que, além dos militares atingidos pela própria bomba, estavam lá figuras proeminentes da repressão, entre elas o coronel de Exército Freddie Perdigão (SNI); o comandante Antônio Vieira (Cenimar); e o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (comandante do Departamento de Operações de Informações do II Exército – DOI-CODI, em São Paulo).
No frustrado atentado do Riocentro, milhares de pessoas teriam morrido. Mas a bomba explodiu antes, atingindo os militares que poriam a bomba sob o palco.
É de lamentar também que alguns militares da reserva, egressos desses bolsões sinistros, manipulem os clubes de oficiais das três armas e insuflem os colegas da ativa, amedrontando o governo e confundindo a opinião pública com o surrado discurso de que a Comissão da Verdade é obra do revanchismo das famílias enlutadas e dos militantes perseguidos naqueles dias terríveis.
A fração pensante da sociedade, que ainda resiste bravamente ao complô da estupidez, espera muito mais dessa Comissão da Verdade e conta igualmente que as instituições pilares do regime de direito ofereçam a seus integrantes todo o apoio indispensável para que eles não caiam na arapuca do faz-de-conta, acarretando danos irreversíveis à história pátria.
Por Pedro Porfírio